Se você cruzar com um bonequinho enterrado em seu jardim, com toda aquela pinta de “macumba”, qual vai ser seu primeiro pensamento? Posso apostar com você que vai ser “boneco vodu”. Aliás, antes que surgissem mais informações em nossa língua aqui no Brasil, toda a tradição haitiana do Voodou parecia se resumir nisso.
Isto é tão verdadeiro – tanto aqui quanto fora do Brasil – que hoje ao folhear o livro “Magic, Witchcraft, and Ghosts In the Greek and Roman Worlds” de Daniel Ogden, uma pesquisa publicada pela Oxford University Press, 2002, deparei com um capítulo curioso: “Voodoo Dolls and Magical Images”. Ou seja, para ele, que é inglês, não parecia ser suficientemente popular o termo em sua própria língua, poppet magick, para definir esta prática de magia específica. Em parte, as antigas produções hollywoodianas podem ser culpadas pela falta de sensibilidade com o tema, em outra parte, livros de fantasia adoravam usar elementos fantásticos de terras distantes e cheias de mistérios. Ninguém se importava muito se isso fosse resultar em medo, preconceito e infâmia.
Ao mesmo tempo o livro nos traz muitas informações interessantes para aqueles que gostam de procurar pistas e preciosidades mágicas através da história. Ele nos explica que a prática mágica com bonecos já era bastante famosa no começo do período arcaico, antes do desenvolvimento das tábuas de amarração/maldição. Durante a transição entre uma prática e outra, foram ainda encontrados bonecos que eram também tábuas de maldição, feitos em chumbo com inscrições, como o “boneco de Mnesimachos” encontrado no Cerameico de Atenas (de cerca de 400 a.C.).
Estes bonecos podiam ser confeccionados com uma variedade de materiais: chumbo, bronze, argila, cera, lã e massa de pão. A ideia de se usar qualquer traço biológico dentro de tais receptáculos também já existia: um simples fio de cabelo poderia atrair o “fantasma” da pessoa ao boneco, que, em um novo corpo, passaria a tomar pouco a pouco as características do corpo anterior.
Remanescentes históricos deste período podem ser encontrados no decreto de fundação da Cirénia (que ficava no litoral da atual Chipre), que condenava a prática e os praticantes, e nos registros do Templo de Apolo em Claros, que recomendava a Artemis que queimasse os bonecos que encontrasse para evitar que uma praga recaísse em sua cidade. O livro passa por vários outros exemplos, tanto de achados quanto de escritos através dos tempos, mas particularmente me chamaram a atenção a Apologia de Apuleio e a receita que figura Papiro Mágico Grego, o philtrokatadesmos.
No primeiro, a Apologia, Apuleio se defende de acusações de que ele teria encomendado de um habilidoso artesão, uma caixa de ébano com dispositivos mecânicos e a éfige de um deus de sua escolha, e de que ali ele havia colocado um espírito maligno.
No segundo caso, do Papiro Mágico, há uma descrição completa do procedimento que usa dias figuras de cera ou argila, uma representando um homem e a outra a mulher, de costas e atadas, onde se espetam treze agulhas (sim, agulhas!) de bronze em lugares específicos enquanto se fazem vários encantamentos. Lembrou algo?
O interessante é que a “magia de bonecos” também não poderia ser somente uma herança grega, já que é possível encontrar variantes sobre o mesmo tema no Egito. De lá para cá é possível encontrar a rota da prática em toda a Europa, e de lá para as colônias. Voilà, agora estamos trazendo um pouco de sentido nesta história do boneco do Voodou. Não que o povo escravizado do Haiti fosse isento de suas imagens antropomórficas de deidades e heróis, nem que estas deidades hoje não aceitem bonecos comuns como representações ou presentes. Tudo isso ocorre. Mas não exclusivamente.
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