Respeitosamente pisei naquele espaço, intimidada pela magnífica visão da luz da lua recortada pelas copas das gigantes árvores na mata. À minha frente caminhavam meus irmãos e irmãs, minha família, meus amados. Em silêncio e profunda deferência chegamos ao local, onde vários vagalumes nos saudavam em espiral. Solo sagrado, vigiado pelos olhos atentos de bichos que voam e rastejam.
Dispusemos nossos mantos, ofertas e os outros apetrechos ao chão, formando um círculo sobre as folhas secas. Minha irmã mais nova, que havia trazido uma porção de gravetos que recolheu no caminho, começou a entoar uma canção doce e forte que agradecia às arvores por nos fornecer os meios de alimentar o fogo. Saudamos a mãe terra, saudamos todo o povo que mora sobre e sob a terra. Batíamos nossos pés no chão, marcando compasso com o pequeno tambor que parecia ditar as batidas dos nossos corações. Os sons vibravam para espalhar a mensagem que correrá através das raízes das árvores, dos animais, dos insetos, tocas, covas e cumes.
Nosso irmão mais novo passou a ajeitar uma pequena pilha central com algumas agulhas de pinheiro. Acendeu o fósforo e com ele o encantamento. Este canto era diferente, energético, que às vezes soava sensual e outras vezes enraivecido, das faíscas às profusas labaredas, enquanto nos relembrava de que o fogo sagrado sempre nasce pequeno. Quando tivemos bom fogo – o suficiente para nos iluminar e nos aquecer, e nada além disso, ele sacou uma bolsa do cinto e atirou ao fogo algumas resinas que fizeram subir um rolo de fumaça perfumada. Cantamos para o vento, enquanto alguns tocavam flautas e apitos que imitavam sons de pássaros.
Chegou o momento da purificação dos novos integrantes da família. Antes nós os chamávamos de parentes de alma, de amigos. Mas muito tempo se passou, e tivemos oportunidades para ver que eles estavam sempre ali, nos momentos bons e nos ruins também. O amigo que generosamente adiantou-se no servir mais do que ser servido. A amiga que confortou mesmo que estivesse, ela mesma, em pedaços. E ainda, aquela outra amiga que cuja palavra inflamava os corações com ânimo e coragem. Pessoas que queríamos carregar em nossos corações até o fim dos nossos dias de vida, pessoas que queríamos carregar em nossas almas também nas noites da morte.
O irmão mais velho tomou a faca em suas mãos, ofereceu-a a eles e propôs um desafio, pois a confiança nasce de um lugar difícil, de incertezas e de inseguranças. Eles tomaram a faca e um a um, cortaram suas velhas peles e as atiraram na fogueira. Ali, se declararam, um a um, livres. O irmão mais velho deu a benção e os sacrifícios foram feitos para selar o pacto.
A irmã mais velha trouxe novas peles com as cores vibrantes da família, e eles foram rapidamente vestidos e se estenderam com o rosto voltado ao chão, em juras e preces aos que já se foram. A irmã mais velha então tomou um fino graveto e começou a entoar a maldição. Um a um do círculo fez o mesmo, para lembrar que as dores de um são as dores de todos. Abraços foram trocados. Beijos afetuosos cobriram os rostos sujos de terra dos mais novos. O fogo foi novamente alimentado, desta vez pelos novatos.
Chegava então o momento da água, do vinho e do veneno. O fogo estava subindo e o ânimo dos participantes também. Na iluminação da fogueira vi os rostos amados, corados de alegria e prazer. Como eram belos estes rostos! Tive estas lembranças em tons cintilantes, seriam de sonhos? Seriam de outros tempos, outras vidas? As sombras que recortavam a luz se uniram girando, brincando de esconder e revelar. Abençoada lembrança. Abençoado esquecimento. Abençoado abandono.
Estávamos rindo e conversando muito animados. Alguns estavam entre abraços e beijos. Outros falavam com algo que o fogo revelava, e ainda outros, ouvindo aqueles ocultos do fogo. Olhávamos para o céu e líamos os oráculos no manto estrelado. Sob o céu resplandecente, os risos e lágrimas se misturaram. Fora do tempo, flashes de memórias vivas do êxtase daquela sagrada embriaguez, enquanto as sombras dançavam divertidas sussurrando: “este é o seu Castelo!”
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