Já que estamos num site chamado “Espelho de Circe”, achei que seria oportuno um pequeno texto sobre os famosos espelhos de obsidiana. Estes espelhos têm sido usados para diversas aplicações mágicas. Entender a razão para isso não é difícil. Como bem colocam MacDonald, Cove, Laughlin e McManus em seu artigo de 1989:
“(…) espelhos apresentam realidades ‘dentro’ deles que refletem o que está ‘fora’. As relações entre estas imagens e os referentes é ambígua”.
Estes autores continuam:
“Assim como rituais podem remover barreiras entre os mundos mitológico e corriqueiro, também os espelhos se tornam portas abertas”.
Ou seja, os espelhos são, por excelência, ferramentas mágicas poderosas.
É bem conhecido que John Dee (1527-1608/9), mago e astrólogo da Rainha Elizabeth, utilizava um espelho de obsidiana para a perscrutação (scrying). Este objeto, do tamanho aproximado de um espelho de mão, era utilizado provavelmente para diversas técnicas de perscrutação e de profecia e talvez ainda para outras que nos são misteriosas. Dee é famoso por ter desvelado o sistema de Magia Enoquiana junto de Edward Kelley (ou Kelly, as duas grafias são encontradas) e embora o referido espelho possa ter sido utilizado para os fins Enoquianos, não é esse sistema que nos interessa agora.
De fato, Whitby revela que no século XVI o uso de espelhos para divinação ou catoptromancia ou ainda enoptromancia, era bastante popular. Além disso, este autor nos explica que a catoptromancia era geralmente agrupada junto da cristalomancia, com a diferença de que os espelhos eram preferencialmente utilizados para divinar ou o futuro ou locais distantes, enquanto cristais revelariam visões de espíritos e anjos.
Isto concorda com o que sabemos de John Dee, que utilizava principalmente cristais para suas comunicações com Anjos Enoquianos. Whitby ainda apresenta relatos de que o Imperador Didio Severo Juliano (133/137-193), do Império Romano, utilizava-se fartamente da divinação por espelhos com o auxílio de meninos vendados e com certos amuletos em suas cabeças. Temos então que o uso do espelho como objeto mágico já era conhecido desde tempos remotos. Entretanto, os primeiros espelhos conhecidos eram de obsidiana e foram datados com aproximadamente 8.000 anos de idade. É possível, portanto, que a catoptromancia seja realmente muito velha.
Menos conhecido é o seguinte: o espelho de Dee não foi construído por ele ou mesmo por qualquer um nas redondezas. O espelho veio diretamente das conquistas no que hoje conhecemos como México. Isso foi recentemente confirmado por meio de técnica de espectrometria de fluorescência de raios X (Vejam o artigo da Forbes na bibliografia). Embora os pormenores da técnica não sejam interessantes para nossa discussão, cabe dizer que esta foi capaz de confirmar que a composição do dito espelho equivale a uma mina de obsidiana encontrada no México Central.
Apenas podemos especular as razões e as maneiras pelas quais este estranho espelho tenha ido parar nas mãos de John Dee. É pouco provável que tenha sido uma encomenda. A hipótese corrente mais aceita é a de que ele teria sido presenteado com o dito espelho tanto por conta de seu notório interesse pelo oculto quanto pela história fascinante desses objetos. Uma vez em posse do espelho e de algumas histórias contadas pelos viajantes, Dee não deve ter encontrado dificuldades em coloca-lo em uso.
Nas Américas, estes espelhos de pedra vulcânica não eram meros objetos, principalmente os circulares. Para os Astecas, por exemplo, eles eram uma das manifestações físicas de um Deus. Estamos falando de Tezcatlipoca.
Antes, porém, cabe relembrar brevemente quem foram os Astecas. De acordo com o site do Guggenheim, os Astecas foram uma civilização que se desenvolveu entre os anos de 1325 e 1521 no que hoje são os territórios do México e da Guatemala. Este império tinha seu centro político na capital Tenochtitlan e encontrou seu fim pelas mãos dos conquistadores Espanhóis. Entretanto, seus descendentes continuaram a passar adiante alguns de seus costumes, que podem ser encontrados até hoje naquela região.
Davíd Carrasco, em seu livro “The Aztecs: a very short introduction” desenvolve um pouco melhor a história dessa civilização e pontua que o Império era formado por “mais de quatrocentas cidades e vilarejos espalhados pela América Central (…)”. Este autor explica que Tenochtitlan era o centro político e religioso deste vasto Império, que viva por meio do equilíbrio de uma aliança entre mais duas cidades estado: Tezcoco e Tlacopan.
Esta breve introdução já é suficiente para nos dar ideia da complexidade deste Império. Seria uma tarefa muito além da proposta neste texto apresentar os conceitos religiosos e políticos desses povos. Nos basta ter em mente que ao longo do processo de formação deste Império e também ao longo de sua existência, as expressões culturais estavam sempre em transformação. Portanto, tudo que será discutido deve ser compreendido como um mero recorte e não como uma “verdade definitiva”.
Também antes de entrarmos na discussão sobre os espelhos propriamente ditos, cabe entender, mesmo superficialmente, a importância da obsidiana para os Astecas. Saunders, neste contexto, nos revela que a obsidiana era central na vida das sociedades mesoamericanas, tanto no âmbito utilitário e econômico quanto no campo simbólico. Este autor destaca a lâmina de obsidiana e seu papel nos sacrifícios aos Deuses.
Indo além na discussão do simbolismo da obsidiana, Saunders explica que os vulcões e montanhas eram habitados por ancestrais e espíritos, assim como as cavernas. Sendo a obsidiana de origem vulcânica e encontrada em minas, é possível especular que o valor deste material estivesse intrinsecamente ligado ao mundo invisível.
Uma das representações de Tezcatlipoca, o “Senhor do Espelho Enfumaçado” ou “Senhor do Espelho Enevoado”. Note que o pé esquerdo é um espelho negro. Deste pé parece emergir uma serpente ou serpentes. Provavelmente, nos ensina Milbrath no livro editado por Badequano, as serpentes se referem aos raios. (Figura retirada da Wikipédia. Acesso em 01/10/2019.)
Uma das falhas no nosso sistema educacional é a total falta de consideração dispensada à cultura indígena e as sociedades ameríndias. Assim, é provável que o leitor ou nunca tenha ouvido falar em Tezcatlipoca ou simplesmente não faça realmente ideia de seus significados. Como vimos, os espelhos eram uma manifestação do próprio, então, se quisermos continuar a estudar o significado e o uso destes artefatos, não podemos nos furtar de compreender a simbologia de Tezcatlipoca. Cumpre dizer que as informações acerca do simbolismo de Tezcatlipoca foram retiradas principalmente do livro editado por Badequano cuja referência está na bibliografia deste texto.
Além do espelho, Tezcatlipoca era frequentemente associado à onça (um animal lunar, avatar do Deus da Lua), mas vamos nos deter principalmente em sua relação com as superfícies de obsidiana, por enquanto. Exploraremos brevemente suas representações animais adiante. Enfim, estes refletem ao mesmo tempo claridade e escuridão e isso permitiria ao observador adentrar em um mundo inacessível pela visão normal. Um mundo habitado por espíritos e por poderes e forças transcendentes e inefáveis. Assim como o espelho, que parece atravessar mundos, Tezcatlipoca também era considerado um Deus que habitava em todos os reinos e domínios. Não havia fronteiras para ele. Nem mesmo os sentimentos e sensações mais íntimas das pessoas. Os Astecas entendiam que para este Deus não havia segredos, sendo ele então a própria manifestação do “olhar no espelho”.
Neste sentido, não é surpresa também que ele fosse o “Patrono dos Feiticeiros”.
Além disso, Saunders afirma que Tezcatlipoca era o Deus da realeza e que o espelho de obsidiana seria uma “metáfora para a regência e o poder”. Isto, para o citado autor, estaria ligado ao papel do Deus como “Mestre do Destino”, já que ele assistia ao desenrolar do mundo por um espelho. Isto nos dá uma ideia da dimensão de poder atribuída a estes espelhos.
Curiosamente, em muitas representações deste Deus o espelho é o próprio pé esquerdo dele. Isto parecer sugerir ou que o Deus se manifesta através do espelho ou ainda que ele entre no espelho. Mais ainda, a forma física do Deus pode ser também a própria expressão do espelho. Neste caso, Tezcatlipoca não seria somente um Deus, mas também um estado. O estado que o operador atinge ao perscrutar.
Apesar disso, espelhos de obsidiana eram associados também a outras divindades, mas não com a frequência e constância com as quais eram associados ao Tezcatlipoca.
Adicionando mais uma camada de significado, cabe dizer que Tezcatlipoca é um Deus também de natureza ctônica, o que quer dizer que está associado ao Mundo Inferior. Ele (ou a “fumaça” ou “névoa” do “espelho enevoado”) pode ter sido visto como a representação da areia levantada durante a agitação de uma guerra e ainda como um símbolo da fumaça da queima de corpos. Associações claras com a morte.
Adicionalmente, a obsidiana, que é retirada de minas, pode também ter contribuído para a associação supracitada, já que o mundo dos mortos é frequentemente subterrâneo. Outro ponto que poder ter reforçado essa associação seria a forma da onça (e também de coiote, de certo pássaro e de serpente), já que são relativamente comuns ao longo da história os relatos de xamãs que se transformam em animais (principalmente pássaros) para atravessar os mundos. Portanto, temos que a fumaça do espelho pode ser a própria matéria do mundo dos mortos e que sua superfície pode estar refletindo, de fato, as almas dos que partiram. Assim, o espelho ganha a dimensão quase que de uma tábua Oujia.
De fato, Evans nos conta que Tezcatlipoca era o “Xamã eterno”, sempre em mutação e o maior dos Tricksters. Ou seja, podemos atribuir ao espelho uma natureza de viagem entre mundos e também de catábase.
Cabe, porém contrapor que Tezcatlipoca era também um Deus associado ao “imaginário celestial”, como nos lembra o artigo de Susan Milbrath no livro editado por Badequano. Temos novamente algo que nos sugere uma qualidade mercurial nesse Deus. Ele parece percorrer todos os ambientes e contextos sem maiores problemas. Tezcatlipoca era até mesmo associado à formação do mundo e do universo. Claro, seu dom profético era também reconhecido, já que ele era considerado aquele que avisa sobre grandes mudanças e términos e começos de eras. Além disso, Tezcatlipoca era associado à astrologia, conforme revela Olivier, o que pode indicar um uso também do espelho nessa ciência.
Não é surpresa então que os sacerdotes de Tezcatlipoca e magos do Império Asteca sabidamente utilizassem o espelho para olhar para o futuro, nos revela também Milbrath.
A qualidade mercurial de Tezcatlipoca aparece novamente no mito que conta que foi este Deus quem ensinou aos homens sobre os sacrifícios. Ou seja, ele teria ensinado as pessoas a maneira mais poderosa de interação com as divindades. Obviamente esta é também mais uma conexão com a morte. Cabe notar que Tezcatlipoca não era o senhor do mundo inferior, nem mesmo um psicopompo, aparentemente. Assim, essas imagens simbólicas de morte devem ser compreendidas de maneira mais sutil, porém relevante. Por exemplo, três do total de nove níveis do mundo Inferior eram ligados à obsidiana.
Ainda, cabe comentar que o espelho de obsidiana era um artefato de uso espalhado pela América Central pré-colombiana. Por exemplo, sabe-se que havia um Deus Maia que também era representado pelo “espelho enevoado”, de acordo com o artigo de Milbrath. Portanto, é provável que o uso de espelhos de obsidiana para práticas mágicas e sacerdotais estivesse espalhado ao longo das civilizações da América Central.
Assim, vemos como o espelho mágico utilizado por John Dee para suas divinações e perscrutações era, na verdade, uma ferramenta ritualística e um ente simbólico poderoso para Astecas e Maias, pelo menos. A associação entre Tezcatlipoca e estes espelhos de obsidiana nos abre um novo conceito que vai além do uso destes para os fins mais amplamente conhecidos: a saber, as divinações de John Dee. Estes objetos são mais dinâmicos e complexos do que a observação superficial jamais poderia revelar. Suas conotações ctônicas podem, principalmente, apontar para um uso nigromântico específico.
De toda a sorte, este pequeno artigo não se propôs a esgotar a relação entre os espelhos de obsidiana e Tezcatlipoca. Pelo contrário, trata-se apenas de uma introdução, de um apontar de direção. O importante é lembrar que há extremo valor em ir além do básico e entender de onde vieram as práticas e utensílios mágicos que utilizamos e conhecemos. Desta maneira, poderemos ganhar insights novos e interessantes acerca de seus usos.
Bibliografia consultada, citada e recomendada
Imagem: Acervo do British Museum, Londres. Figura retirada de https://www.britishmuseum.org. Acesso em 01/10/2019.
https://www.guggenheim.org/arts-curriculum/resource-unit/the-aztec-empire
https://www.forbes.com/sites/davidanderson/2019/07/26/origins-of-aztec-and-inca-obsidian-mirrors-revealed-through-scientific-analyses/#64272c4e4fc0)
Badequano, E. Tezcatlipoca: trickester and supreme deity.
Carrasco, D. The Aztecs: a very short introduction.
Eliade, M. Shamanism.
Enoch, J. M. History of mirrors dating back 8000 years. Optometry and vision Science. 2006. Volume 83. Número 10. Páginas 775-781.
Evans, S. T. Ancient Mexico and Central America: Achaelogy and Culture History.
MacDonald, G. F., Cove, J. L., Laughlin Jr., C. D., McManus, J. Mirror, Portals, And Multiple Realities. Journal of Religion & Science. 1989. Volume 24. Número 1. Páginas 39-64.
Olivier, G. Mockeries and Metamorphoses of an Aztec God; Tezcatlipoca, “Lord of the smoking mirror”.
Saunders, N. A dark light: Reflections on obsidian in Mesoamerica. World Achaeology. 2010. Volume 33. Número 2. Páginas 220-23.
Whitby, C. L. John Dee and Renaissance Scrying. 1985
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