Nota: Este texto foi publicado numa outra encarnação deste site, em 2012, e infelizmente tem sido replicado sem crédito (ou ainda, dando o crédito para outra pessoa). Como parece ter sido um texto bastante apreciado, resolvi colocá-lo de volta.
O ungüento de vôo, também conhecido como ungüento das bruxas, ungüento verde ou ungüento licantrópico, é um preparado, uma pomada alucinógena, um consenso entre historiadores, etnobotânicos, antropólogos, estudiosos e praticantes das Artes Ocultas e Inominadas. Circe talvez seja a nossa primeira lembrança como referência ao uso de ervas (no caso a misteriosa planta “Molly”) para alterar a percepção de uma pessoa, mas o “fenômeno” é relatado nos mitos e lendas do mundo inteiro: os berserkers nórdicos e os guerreiros celtas (entre outras tribos guerreiras) faziam usos de preparados que “metamorfoseavam” aquele que os ingeriam em animais poderosíssimos, temíveis e incansáveis. Pitonisas se intoxicavam com gases e os xamãs do mundo todo tomam beberagens para “ver” ou “ir” ao “Outro Mundo”.
Mas o que é alucinação e como podemos entender este termo no contexto em que se aplicava antigamente? Hoje, bem sabemos que este é um estado patológico que indica o “ver ou ouvir” algo que não está lá, mas na sua raiz grega, alyein, indica “vagar sobre” ou “vagar fora de si” e sua sucessão latina, alucinatus, “vagar em sua mente” ou “vagar em imaginação”, e vaticinari – uma revelação, visão ou algo que é revelado. Então podemos redefinir a alucinação no campo da etnobotânica mágica como um estado onde revelações são dadas pela virtude da imaginação. Assim, a pessoa não está vendo algo que não está lá, mas simplesmente alterando os planos de consciência e entrando em uma dimensão de revelações.
Já no século II Lucio Apuleio [1] contou a história de Lúcio, um viajante que se envolve em uma experiência mágica na Tessália (onde ele é transformado num asno), uma região da antiga Grécia conhecida em toda a literatura greco-romana como a pátria das feiticeiras. Ele conta:
“Num dia Fotis veio correndo me ver e estava coberta de medo, ela chegou me dizendo que sua senhora, para conseguir trabalhar suas feitiçarias naquele que amava, pretendia na noite que se seguiria se transformar em um pássaro para voar para onde desejasse; Assim ela quis que eu me preparasse secretamente para ver o mesmo. E, quando a meia-noite chegou, ela me levou com cautela a uma câmara superior, e me fez olhar pelo vão da porta: primeiramente eu a vi [Panfília, a bruxa] se despir de todas as suas roupas e apanhou de dentro de uma espécie de cofre diversos tipos caixinhas e potes, dos quais abriu um e deixou escorrer pelos seus dedos o óleo que dali saia, esfregando-o então por todo o corpo, das solas dos pés até o topo da cabeça, e quando começou a falar consigo mesma, segurando uma vela em sua mão, parte de seu corpo tremeu e eis que percebi uma nuvem de penas que surgiu, seu nariz tornou-se brilhoso, torto e duro, suas unhas transformadas em garras, e assim ela se tornou uma coruja. Então ela gritou e guinchou com um pássaro daquele tipo, e desejando provar sua força, moveu-se do chão pouco a pouco, até que finalmente voou para bem longe.”
A referência aqui é bem clara, tanto no processo de metamorfose quanto a de vôo noturno. Podemos também perguntar como Lúcio conseguiu perceber tal transformação (talvez ele também estivesse sob forte efeito alucinógeno?). Este trecho também nos dá a dica do tal preparado oleoso que é espalhado pelo corpo da bruxa, uma das formas mais comuns de aplicação de vários tipos de remédios nos dias de Apuleio.
Os alcalóides contidos nas plantas usadas na confecção dos ungüentos na Europa Medieval podem causar a morte quando tomadas oralmente em quantidades excedentes a certo limite de toxidade. Se absorvidos por outras rotas e em doses menores que as letais, elas causam efeitos alucinógenos. Os povos antigos descobriram que a lenta penetração de uma dose baixa destes alcalóides pode causar experiências mentais prazerosas. Uma forma de administração destes componentes no corpo era a aplicação de ungüentos – os famosos ungüentos de vôo das bruxas!
De acordo com relatos da inquisição, os ungüentos eram aplicados na pele em diferentes partes do corpo ou através das mucosas, pelo uso da vassoura untada ou de ‘falos’ de madeira. O eufemismo “cavalgada” era usado para o “congresso sexual”, e “a vassoura entre as pernas da bruxa” era o eufemismo para “dentre”. De fato, a vassoura nada mais é do que um equivalente medieval de um objeto ritual antigo, chamado “olisbos”, ou como alguns autores clássicos o chamaram “penis coriaceus”. Este era um pênis moldado em couro que as bacantes carregavam nas procissões, e era o pênis artificial (vassouras e outras “varas menores”) que o Diabo usava nos encontros do Sabbath relatados pelas bruxas durante os processos inquisitoriais [2] .
Os relatos mostram repetidamente que as bruxas falavam não só de ungirem seus corpos, mas também suas vassouras. Durante o julgamento de cinco mulheres acusadas de bruxaria em Arras, em 1460, a seguinte confissão foi registrada:
“Quando elas desejavam realizar um feitiço, com um ungüento que o Diabo havia entregado a elas, e elas untavam uma vara de madeira que era tudo menos pequena, e suas palmas e suas mãos inteiras igualmente; e assim, colocavam uma vara pequena entre suas pernas, e diretamente voavam onde queriam ir, sobre boas cidades e florestas e águas, e o Diabo guiava-as ao lugar onde elas devem realizar suas assembléias.” [3]
Obviamente, a menção ao “Diabo” era uma forma de ocultar o “Homem de Negro”, o mestre ou magister de um grupo de bruxos.
Não havia interesse nos ungüentos durante o período da Inquisição. Eles procuravam “reais” aparições de Satanás, e não alucinações induzidas por plantas dentre os camponeses. A maior parte das acusações foi julgada em cortes civis locais, e assim, a coleta, posse ou uso de plantas associadas às “bruxas” (ou seja, a grande maioria) era no mínimo suspeita. Ainda assim, a maioria dos julgamentos não tinha nada a ver com plantas, ou vôo ou conhecimento de ervas, ou ainda, qualquer religião de deusas. As acusações focavam-se nas vacas produzindo leite azedo, na infertilidade das mulheres e animais, colheitas perdidas e na cruel pobreza. [4]
Estudos indicam que as drogas penetram lentamente pela barreira da pele e gordura corporal. Ao misturar o sumo (espremendo-se a planta até obter seu suco), decocto (redução de até 1/3 através de fervura) ou alcoolatura (material seco curtido em álcool de cereais) em um meio gorduroso a absorção é bastante aumentada. O “meio gorduroso” também possui uma história bastante peculiar, que explica as inúmeras menções de que as bruxas visitavam cemitérios e patíbulos para roubar partes de corpos, ou de que sacrificavam crianças e até mesmo bebês. Antigamente acreditava-se que qualquer ungüento (mesmo os medicinais) funcionava melhor se preparados tomando como base a própria gordura humana, em especial a gordura de bebês. Por outro lado, mesmo que possamos encontrar algumas receitas com este elemento sinistro, a gordura de porco (que chora como uma criancinha quando abatido) é o elemento mais provável. Um traço comum nos receituários (grimórios) era o uso de termos muitas vezes “demonizados” da época, assim como toda a natureza foi. Há uma referência disso no “fermentado das Bruxas” exposto em Macbeth (ato 4, cena I), onde figuram o meimendro negro (Hyoscyamus Niger), a cicuta (Conium maculatum, Cicuta Virosa) mais diretamente, mas o teixo (Taxus baccata) é apresentado como “sangue de rato”, e o “dente de lobo” faz referência à ergotina (cravagem). Nesta época várias plantas eram associadas às bruxas e ao diabo e tomaram nomes populares que envolviam prefixos como “Satan, Telfel, Hexen”, como “Satanpilz” (cogumelo de Satã), “Satanwurz” (salsicha de Satã), Teufelsbeere (bagas do diabo), Teufelsarsch (bunda do diabo), Hexenauge (olho de bruxa), Hexendorn (espinho de bruxa), isto tudo de uma lista bastante extensa coletada no apêndice do livro Witchcraft Medicine. [5]
Agora existe uma moda de se preparar “ungüentos de vôo modernos”, com a garantia de que não sejam venenosos. Mas sem o risco, não há qualquer resultado. As receitas não são mais do que invencionices inócuas que servem a um crescente comércio esotérico, que pouco ou nada têm a ver com as receitas dos antigos grimórios.
Chas Clifton, em “If Witches No Longer Fly: Today’s Pagans and the Solanaceous Plants” [6] , conclui seu artigo com uma constatação bastante interessante:
“Estes pagãos contemporâneos que usam enteógenos tradicionais são cautelosos ao discuti-los. Muitas destas substâncias têm sido divulgadas como ‘baratos legalizados’, e em uma sociedade que está acostumada a ver as ‘drogas’ como agradáveis pilulazinhas e cápsulas, os usos dos perigosos e fronteiriços enteógenos tradicionais com seus bagunçados efeitos colaterais ocasionais podem não apelar até mesmo aos auto-descritos Bruxos. Assim, por todas as afirmações feitas de conexões com as vítimas da ‘Era das Fogueiras’, a maioria das bruxas contemporâneas e outros pagãos escolheram virar as costas para o que pode realmente ser a única conexão com uma era anterior de prática xamânica – os enteógenos tradicionais euro-asiáticos.”
Ainda existem ‘brujas’ que vendem suas pomadas (ou unguentos, se preferir) de Datura no México e esta é realmente uma contraparte exata aos unguentos das bruxas da Era Medieval, que eram feitas tomando-se por base o Meimendro (Hyoscyamus Niger), a Datura (Datura stramonium), o Heléboro (Helleborus niger), o Acônito (Aconitum spp.), a Papoula (Papaver somniferum) e a Beladona (Atropa belladonna), entre outras ervas muito tóxicas. Todas elas são ervas “solanáceas”, ou seja, “consoladoras” – da mesma maneira em que a bruxa era considerada uma “consoladora social”, uma envenenadora e uma curandeira.
Notas: [1] Em “O Asno de ouro” (ou Metamorfoses), Livro III, Cap. XVI [2] Cf. The Roots of Witchcraft (Harrison, M.) [3] How do Witches Fly, pg 6 [4] Phamako Gnosis, Plant Teachers and the Poison Path – Dale Pendell – Toloache, Flying Herbs and the Witch’s Garden: Tropane Alkaloids, Daimonica, pg 246 [5] Witchcraft Medicine – Healing Arts, Shamanic Practices, and Forbidden Plants, Claudia Müller-Ebeling, Christian Rätsch and Wolf-Dieter Storl – Pag 210 a 220 [6] If Witches No Longer Fly: Today’s Pagans and the Solanaceous Plants Bibliografia e leitura recomendada:
Mastering Herbalism – A Pratical Guide, Paul Huson, Ed. Madison Books (Lanham, NY, Oxford)
How do Witches Fly – A practical Approach to Nocturnal Flights
Witchcraft Medicine – Healing Arts, Shamanic Practices, and Forbidden Plants, de Claudia Müller-Ebeling, Christian Rätsch and Wolf-Dieter Storl
Phamako Gnosis, Plant Teachers and the Poison Path, Dale Pendell
The Roots of Witchcraft (Harrison, M. – Ed. The Citatel Press, Secaucus, NJ, 1974
Lucius Apuleius – O Asno de Ouro (The Golden Ass – Ed. Penguin)
If Witches No Longer Fly: Today’s Pagans and the Solanaceous Plants
ADVERTÊNCIA
As plantas, fungos ou animais discutidos aqui são altamente tóxicos. Qualquer experimentação com estes itens são fortemente desencorajados. A autora não assume qualquer responsabilidade pela experimentação e uso incorreto, e os textos não são mais do que “curiosidades etnobotânicas”. 🙂
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