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Foto do escritorHumberto Maggi

O Ofício do Feiticeiro

É comum que me perguntem como funciona meu trabalho mágico com São Cipriano, especialmente porque em meus escritos eu sempre deixo claro o caráter não-histórico desse personagem. Entretanto, um caráter histórico firme nunca foi necessário para a descrição de uma entidade mágica, como fica claro, por exemplo, nas lendas sobre a Rainha das Sete Encruzilhadas, já que nenhuma rainha na história da França corresponde ao que dela se conta (tratei sobre esse ponto em meu último livro; imagem a seguir).

Para falar do meu trabalho com São Cipriano, é melhor voltar no tempo e rever todo o meu relacionamento com as lendas sobre o Santo e o seu Livro. Isso nos leva de volta a 1988, o ano em que servi na Brigada de Infantaria Paraquedista. Daí vem minhas memórias mais antigas sobre o tema, com os eternos companheiros comentando estórias fantásticas sobre o Livro e sobre a sua posse. As ideias que se podem tirar dessas estórias, que tanto me interessaram na época, são as de que o Livro é uma fonte de poder por si mesmo, que a simples posse do mesmo ocasiona fenômenos mágicos espontâneos, e que adquirir o Livro amonta a um pacto implícito e a se tornar feiticeiro.


Foi nesse ano no Exército que comprei meus dois primeiros livros sobre Magia, o Diário de um Mago, do Paulo Coelho, e (claro!!!) um exemplar do Livro de São Cipriano, uma edição de capa dura pequena com o infame Baphometh de Levi nas primeiras páginas.


As semelhanças entre as duas obras quase me escaparam então. O Diário de um Mago narra a peregrinação de Paulo Coelho pelo Norte da Espanha em busca de uma Espada Mágica, e no Livro de São Cipriano um camponês francês percorre um trajeto semelhante, pela mesma região,  em busca de um tesouro. Como companhia, o mago tem um demônio mensageiro, distribuidor de riquezas conforme a raiz da própria palavra daimon indica, que o testa de vária maneiras; e também o camponês francês é acompanhado por Belzebuth, com quem fez um pacto após encontrar uma cópia dos Engrimanços de São Cipriano. Assim como o demônio mensageiro do mago brasileiro, Belzebuth ensina e testa o camponês francês durante toda a viagem até lhe entregar o seu tesouro.


As semelhanças podem não ser mera coincidência, pois na biografia O Mago: a Incrível História de Paulo Coelho de Fernando Morais lemos que, como todo brasileiro interessado em magia, também Paulo Coelho chegou a ler o Livro de São Cipriano em sua juventude.


Como já mencionei em outros escritos, entretanto, meu primeiro contato com o Livro de São Cipriano foi decepcionante, pois não encontrei nele ensinamentos de magia cerimonial e a maior parte dos segredos mágicos me pareciam impraticáveis. Foi muito tempo depois que consegui apreciar o valor histórico desse livro, e compreender melhor as práticas que ele preserva como sendo registros de feitiçarias populares que atravessaram séculos. Uma parte interessante das minhas pesquisas tem sido justamente o comparar entre esses segredos com exemplos das antiguidades, especialmente dos Papiros Mágicos Gregos.


Mas, nada disto me ajudou muito em termos de prática, então. Do Diário de um Mago e do Livro de São Cipriano ficaram as ideias de que o mago deve adquirir um protetor e um assistente mágicos; ideias também bem antigas que se preservaram na nossa cultura desde o Pnouthis dos Papiros Mágicos Gregos até o Abramelin do século XVII, passando pela Confissão de Cipriano do século IV (texto disponível no meu Thesaurus Magicus II) até as lendas de Fausto; tratei sobre essas continuidades no meu estudo O Bom Amigo de Fausto, republicado em Português na minha antologia Scientia diabolicam, disponível no site do Clube de Autores.


Paulo Coelho invoca o demônio mensageiro, na versão em quadrinhos.

Foi bem mais tarde que a Magia Ciprianica se incorporou ao meu arsenal mágico. A primeira experiência se deu durante um dos meus trabalhos semanais com os Chefes do Grimorium Verum; me foi apresentada uma imagem de Cipriano como um xamã pré-histórico, coberto em peles negras, forte e sorridente. A ideia codificada na imagem era a de uma continuidade de práticas e praticantes se sucedendo no tempo, com Cipriano sendo um exemplo e um símbolo.


Um dos elementos que me fascinam na tradição de práticas associadas ao nome de Cipriano é o seu caráter de revolução e resistência. Em meus estudos deixo claro que a lenda de Cipriano é uma criação cristã elaborada para atacar o Paganismo e a Magia; mas tal é a força, resiliência e adaptabilidade da mentalidade mágica que a lenda foi voltada contra seus primeiros objetivos e passou a representar aquilo que atacou. Primeiro, o Livro ganhou seus status mítico, representando todo o conhecimento e poder do Cipriano feiticeiro antes da sua conversão; depois, Cipriano ele mesmo foi sendo ressignificado de grande defensor contra a feitiçaria em patrono do feiticeiro. É aqui que minhas práticas ciprianicas começaram, usando o Livro como talismã e o Santo Feiticeiro como patrono.

Εγρήγορος

A palavra egrégora tem sua origem no título dados aos vigias do Livro de Enoque, os ἐγρήγοροι. Evoluindo a partir daí, em Eliphas Levi egregor indicava tanto os espíritos planetários quanto os grandes poderes do cosmo e da natureza (ver Egregor, by L.S. Bernstein). Em breve seu uso se expandiu para representar algo como “uma entidade psíquica autônoma” (ver https://www.wordsense.eu/egregore/), que pode ter uma origem natural ou artificial. Como é típico entre os saberes ocultistas, seu significado presente tem que ser entendido dentro do contexto do autor ou obra.


O conceito de egrégora nos permite uma possibilidade de explicação diante do caráter não-histórico do Cipriano original. A lenda do Livro atravessou dezesseis séculos e está fortemente enraizada nos países de língua Portuguesa e Espanhola, e nesse processo pode ter dado origem a uma egrégora específica, que vem sendo continuamente alimentada. O conceito de egrégora não exclui a ideia de que seres mágicos afins tenham se aproximado e interagido, talvez mesmo criado, esse campo vasto de energias codificadas em símbolos. É com essa realidade mágica que o feiticeiro interage quando se volta para o conceito de São Cipriano Feiticeiro, até mesmo quando simplesmente adquire seu livro.

A Simplicidade

Quando comprei meu primeiro exemplar do Livro de São Cipriano em 1988 assinei meu nome na página onde se via o Baphometh de Levi (que para mim, na época, era mesmo uma representação do Diabo), e levei o livro para lugares desertos na tentativa de fazer um pacto. Obviamente, a coisa não acontece como nos filmes.


Décadas mais tarde, depois que tive minha primeira visão de Cipriano durante meu trabalho com o Grimorium Verum, comecei aos poucos a trabalhar com essa presença, sempre de forma simples. A simplificação das minhas práticas foi ocorrendo com o tempo, em parte influenciada pela leitura dos diários de John Dee, que recorria apenas à preces durante sua sessões com Edward Kelley, em parte pelas descrições de como as feiticeiras se valiam do que tinham à mão, e em parte como resultado mesmo do que se aprende com a experiência. Minha prática ciprianica segue o modelo de prática de altar, tendo como elemento principal uma cópia que fiz do livro português do século XIX (disponível no site da Biblioteca Nacional de Portugal), e uma caveira dourada.


A caveira dourada tem uma estória interessante; quando comecei a trabalhar com Cipriano minha esposa teve algumas visões, e nessas ele aparecia com uma caveira dourada e um livro nas mãos.

Imagem feita por Bebeto Daroz.

A presença mágica de Cipriano era forte o bastante para que outras pessoas também tivessem experiências inusitadas, como ocorreu com minha sogra e com o artista Bebeto Daroz, que fez uma imagem a partir das visões de minha esposa. Em abril de 2017 eu dei uma palestra sobre Cipriano a convite do eminente erudito Thomas Karlsson na Esoteric Crossroads IV, realizada na Villa San Michelle em Capri. Depois da conferência eu e minha esposa fomos a Pompéia e Roma, e no último dia de viagem, ao entrar em uma lojinha, encontrei a caveira dourada que passei a usar em minhas práticas.

Foto de Livro e da Caveira dourada, tirada em um hotel em Nápoles.

Uma coisa é importante nesse tipo de prática: a capacidade de se interagir com a presença para receber ensinamentos; existe um processo longo de aprofundamento onde se aprende muito, e esses conhecimentos devem ser mantidos em segredo, são informações às vezes práticas e às vezes sobre os diversos mundos, e que o praticante deve obter diretamente de suas entidades. Não se trata de algo exclusivo à Magia Ciprianica, e eu comento brevemente também sobre isto em relação aos espíritos da Goetia na introdução de um dos meus livros (a introdução está disponível para leitura no site do Clube de Autores).

Capa também feita por Bebeto Daroz.

Este tipo de prática se desenvolve com o passar do tempo, se torna mais rica em diferentes aspectos; por exemplo, em dado momento adicionei a oferenda de whisky Red Label a pedido da própria entidade. Muito se discute sobre a origem e utilidade desse tipo de oferenda, desde que Porfírio de Tiro questionou a materialidade dos rituais teurgicos. Assim como fez Jâmblico de Cálcis no século IV, mais tarde os Umbandistas do século XX tiveram que elaborar apologias para o uso de itens como fumo e cachaça em seus rituais. Em ambos os casos, visões diferentes sobre o mundo em que vivemos levaram a posições irreconciliáveis sobre a prática espiritual, que eu, pessoalmente, transponho pelo simples fato de que as próprias entidades, consistentemente, sempre pediram por esses elementos. Defensores de uma espiritualidade desconectada da matéria, é claro, se empenham a partir deste ponto em questionar a “pureza” de entidades que pedem  oferendas, mas me parece que são eles que limitam a manifestação plena dos espíritos com suas bobagens teóricas, às quais seus guias se conformam por conhecerem seus limites intelectivos.


Por fim, devo relatar que São Cipriano (ou, a entidade que se apresenta quando trabalho com “ele”) em mais de uma vez me ajudou de forma espontânea na resolução de problemas; uma vez, por exemplo, em um impasse imobiliário, imediatamente após  um sonho onde Cipriano era mencionado junto com uma solução, acordei para ver uma mensagem que havia acabado de chegar, dando um acerto inesperado para o problema. São estórias desse tipo que reforçam a possibilidade de uma existência objetiva desses seres.


Existem outros tipo de interação também, que ocorrem nessas práticas; por exemplo, a ideia de escrever este texto me veio à mente quando estava trabalhando com a entidade no seu dia, 26 de Setembro. A tradução do Cipriano espanhol para o inglês também me veio da mesma fora, e etc.

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