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Foto do escritorHumberto Maggi

O Livro de São Cipriano e a Quimbanda

Trechos de um trabalho em elaboração


Os primeiros registros de necromancia em um idioma ocidental vêm dos versos de Homero. A Ilíada e a Odisseia nos dão informações sobre três categorias de mortos e como eles podem interagir com os vivos.


Primeiro, temos os espíritos sem descanso que não podiam se integrar no reino subterrâneo de Hades e tinham algum poder para afetar os vivos. A Ilíada nos mostra a psique de Pátroclo, que volta a implorar a Aquiles por seu enterro, e na Odisséia a psique de Elpenor faz o mesmo, mas desta vez com ameaças::


Lá, então, ó príncipe, desejo que se lembre de mim. Não me deixes para trás, sem ser lamentado e enterrado, quando fores para lá, e não te desvies de mim, para que eu não traga sobre ti a ira dos deuses.[1]


Pátroclo e Elpenor estavam sem descanso porque eram ataphoi (de αταφος, não enterrados); a multidão de fantasmas que cercou Odisseu no início de sua necromancia também parecia ser composta de diversas categorias de mortos sem descanso, pois podemos distinguir entre eles os aoroi (de αωροσ, prematuros) que morreram antes da hora certa, os biothanatoi (de βιαιος e θανατος, violência e morte) que morreram violentamente e os agamoi (de αγαμος, solteiros).


Depois, reuniram-se saídos do Erebus os espíritos daqueles que estão mortos, noivas e jovens não casados, homens velhos cansados e donzelas carinhosas com corações ainda novos para a tristeza, e muitos também feridos por lanças de ponta de bronze, homens mortos em luta, vestindo sua armadura manchada de sangue. Estes vieram aglomerando-se na multidão por todos os lados, com um grito maravilhoso; e o medo pálido me agarrou.[2]

O cristianismo, com seu culto aos mártires e santos, trouxe uma reversão completa a essas crenças, vendo a morte violenta de jovens virgens não apenas como um ingresso direto para o céu, mas também como concedendo-lhes poder de interceder pelos ainda vivos.


A segunda categoria de mortos eram os aceitos no Hades que “voavam como sombras”[3]; Hades era tão sombrio quanto o Sheol original judaico e suas sombras só puderam reconhecer Odisseu depois de beber o sangue de seu sacrifício. A mancia que esses nekroy podiam fornecer era limitada ao conhecimento que eles tinham antes de morrer.


Houve, no entanto, uma exceção, o único indivíduo da terceira categoria que prefigurou os futuros iniciados dos cultos de mistérios: “o espírito do TebanoTeiresias, o vidente cego”[4]; para ele “mesmo na morte, Perséfone concedeu razão, para que somente ele tivesse entendimento”[5]. Tirésias, como seu colega no Antigo Testamento, o profeta morto Samuel invocado por Saul com a arte da Bruxa de Endor, ainda podia dar mancia sobre o futuro.


Embora Odisseu se referisse aos habitantes de Hades como as “impotentes cabeças dos mortos””[6] a visão grega sobre os mortos sem descanso muda depois de Homero e os gregos começaram a atribuir a eles mais poder para interferir na vida dos vivos; esse poder começou a ser aproveitado pelos magos e existem várias fórmulas e receitas sobre como fazer isso nos papiros mágicos gregos e nas tábuas da maldição. Aqui as ideias cristãs também interferiram, pois a escatologia cristã negou a possibilidade de que as almas dos mortos escapassem de seu status post mortem para interferir nos assuntos dos vivos: o que “os gregos chamam de νεκρομαντείαν” Santo Agostinho reinterpreta como “aparências pelas quais os demônios faziam esporte ” do praticante que acreditava estar invocando os deuses ou “ os habitantes do mundo inferior”[7].


Depois de Homero, também vemos o surgimento do culto grego aos heróis, sendo os heróis agora uma categoria especial dos mortos que são poderosos para ajudar seus devotos, e seus cultos geralmente eram realizados em seus túmulos. O culto cristão dos santos foi essencialmente uma adaptação necessária para preencher a lacuna deixada pelo abandono dessa prática pagã.


Já vimos nos capítulos precedentes muitos exemplos sobre como o cristianismo influenciou as práticas mágicas, e o elemento-chave nessas influências foi a demonização do mundo espiritual; no entanto, o catolicismo cristão nunca alcançou uma vitória completa em erradicar as antigas crenças e superstições dos europeus, e entendimentos pouco ortodoxos sobre como funcionava a magia e a feitiçaria feitas com a ajuda dos espíritos permaneceram arraigados em todos os níveis da população. Magos de grimórios, com educação clerical, tinham que discordar em seus corações dos escritos de Santo Agostinho, se desejavam realizar magia salomônica e conjurações angélicas; as bruxas e feiticeiros exilados na colônia que vimos não aceitavam a demonologia dominante da Igreja.


Para falar da necromancia ibérica que ajudou a moldar a Quimbanda, vamos usar o Livro de São Cipriano, e isso por duas razões. Primeiro, o Livro de São Cipriano coletou uma grande quantidade de receitas de magia popular, onde podemos discernir muitos dos conceitos necromânticos que foram trazidos para o Brasil; segundo, como atestou João do Rio em 1904, o Livro de São Cipriano foi amplamente utilizado pelos praticantes dos diversos sincretismos europeu-africanos que ajudariam a criar a Quimbanda:


Mas o que não sabem os que sustentam os feiticeiros, é que a base, o fundo de toda a sua ciência é o Livro de S. Cipriano. Os maiores alufás, os mais complicados pais-de-santo, têm escondida entre os tiras e a bicharada uma edição nada fantástica do S. Cipriano. Enquanto criaturas chorosas esperam os quebrantos e as misturadas fatais os negros soletram o S. Cipriano, à luz dos candeeiros…[8]

A influência do Livro de São Cipriano permanece forte, como podemos ver hoje em dia várias versões e edições diferentes à venda nas mesmas lojas onde encontramos os implementos para as práticas de Quimbanda; é um trabalho que deve ser sempre reconhecido de uma maneira ou de outra pelos praticantes.


Os conceitos necromânticos que encontramos no Livro de São Cipriano são fundamentalmente católicos, mas também se desviam da ortodoxia em três pontos importantes. Primeiro, as almas no Purgatório não são limitadas em suas ações e podem ser invocadas para fins práticos; segundo, algumas almas especiais dos condenados não estão confinadas no inferno, mas também podem ser invocadas, como Maria de Padilha, que aparece em cinco feitiços do livro; e em terceiro lugar, temos algumas menções a “maus espíritos batizados” que podem ser interpretadas como se referindo a espíritos e fantasmas humanos inferiores, que podem prejudicar as pessoas, juntamente com os “demônios excomungados” com os quais estão associados:

[…] por estes deliciosossimos nomes de N.S.J.C fujam todos os demonios, fantasmas e todos os espiritos malignos em companhia de Satanaz e de seus companheiros para suas moradas que são nos infernos e onde estarão perpetuamente em companhia de todos os feiticeiros e feiticerias que fizeram feitiçaria a esta criatura (fulano) ou nesta casa.[9]


A adoção dessas categorias de espíritos para a feitiçaria resgata (ou preserva?) de certa forma as práticas daimônicas da antiguidade: as almas no Purgatório representam os mortos sem descanso antigos, e espíritos superiores como Maria de Padilha (e até São Cipriano de certa maneira) representam os daimones maiores ou os heróis a quem os magos e teurgistas faziam petições. E Lúcifer aparece como o grande senhor dos demônios e dos mortos no Inferno (muitas vezes chamado de “Hades” no Novo Testamento), prefigurando sua futura posição na Quimbanda; os feitiços do Livro de São Cipriano também aproximam Maria de Padilha e Lúcifer, e aqui podemos talvez encontrar o motivo de sua futura associação como casal na Quimbanda.


Minha mágica preta, eu te entrego a Maria Pandilha, a toda a sua família e a todos os diabos do inferno, mancos, catacegos, aleijados e a tudo quanto for infernal, para que d’aqui nasçam dois diabos para me dar dinheiro, porque quero dinheiro pelo poder de Lúcifer, meu amigo e companheiro d’ora avante.[10]


A aliança dos mortos com os demônios e sua capacidade de deixar o inferno e afetar os vivos, a idéia de que alguns dos mortos estão em posições de destaque na hierarquia infernal e o conceito de que as almas do purgatório podem ser usadas para feitiçaria foram elementos-chave no desenvolvimento do Quimbanda, e também podemos suspeitar da influência direta do Livro de São Cipriano em algumas práticas, como a maneira como o balé é usado por algumas pessoas hoje (mais sobre isto adiante). A necromancia do livro, por exemplo, atesta que espíritos podem ser cooptados no cemitério para ajudar o feiticeiro, como podemos ver na receita a seguir:


Receita para ser feliz nas coisas que se empreendem

“Tome-se um sapo vivo, corte-se-lhe a cabeça e os pés em uma sexta-feira, logo depois da Lua cheia do mês de Setembro; deitem-se esses pedações de molho pelo espaço de 21 dias em óleo de sabugueiro, retirando-se depois deste prazo, às primeiras badaladas da meia-noite; expondo-se depois deste prazo pelo espaço de três noites seguidas aos raios da Lua. Calciná-lo em um pote de barro que nunca tenha sido usado, misturando-lhe depois igual quantidade de terra de cemitério, mas justamente do lugar em que esteja enterrada alguma pessoa da família da pessoa a quem se destina a receita. A pessoa que a possuir pode ter toda a certeza de que o espírito do defunto velará pela sua pessoa e por todas as coisas que empreender, por causa do sapo, para não perder de vista os seus próprios interesses.”[11]


A ideia de que os espíritos pudessem permanecer em cemitérios ou em torno de seus locais de sepultamento (como os mortos enterrados em igrejas e cemitérios explorados em outros feitiços do Livro de São Cipriano) não estava tão longe da ortodoxia ou da aceitação católica quanto podemos pensar; a ideia de que túmulos e relíquias de santos são locais de poder, por exemplo, e as práticas de indulgências nos cemitérios, como vimos anteriormente, podiam levar as pessoas a acreditar que a sepultura pode manter algum tipo de ligação com o espírito do falecido. Alguns exemplos interessantes podem ser tomados das revelações da polêmica freira franciscana espanhola Magdalena de la Cruz (1487-1560), que desde a infância até 1546 foi respeitada como uma santa viva, mas depois confessou ter estado sob o poder do diabo durante toda a sua vida. Durante seus anos dourados, ela repetidamente afirmou que almas pecaminosas poderiam sofrer em seus túmulos e pedir orações e perdão; o fato de o conceito por trás dessas revelações não ter sido contestado antes ou depois de sua queda da graça é uma indicação de que a ideia era considerada aceitável.


E um dia ela disse que, de um túmulo que ela apontou, uma freira se levantava para falar com ela e disse a certas pessoas que as almas dos falecidos vêm pedir perdão.

E, uma vez extasiada, pareceu-lhe que a alma de certa pessoa a quem ela nomeou estava sofrendo oito dias na sepultura junto com o seu Corpo, e que dali havia partido para se regozijar em Cristo, o que ela disse a certa pessoa que esse era o maior castigo que as almas têm no outro mundo.[12]

Essas ideias confundem a fronteira entre o túmulo e o Purgatório e, de fato, fazem do túmulo uma porta de entrada para esse lugar onde as almas são purificadas pelo sofrimento. No exemplo acima, o sofrimento na sepultura (“o maior castigo”) foi suficiente para conceder acesso ao céu. Da perspectiva do “sofrimento na sepultura”, podemos inferir que ser chamado pelo feiticeiro para trabalhar para ele, como na Receita para ser feliz, poderia significar uma melhoria na situação do espírito, uma ideia encontrada também na Umbanda e na Quimbanda.


[1] Odyssey 11.71-75. In The Odyssey with an English Translation, A.T. Murray, PH.D. Traduzido para o Português por Humberto Maggi.

[2] Odyssey 11.40-45. In The Odyssey with an English Translation, A.T. Murray, PH.D. Traduzido para o Português por Humberto Maggi.

[3] Odyssey 10.496. In The Odyssey with an English Translation, A.T. Murray, PH.D.

[4] Odyssey 10.496. In The Odyssey with an English Translation, A.T. Murray, PH.D.

[5] Odyssey 10.494. In The Odyssey with an English Translation, A.T. Murray, PH.D.

[6] Odyssey 11.30. In The Odyssey with an English Translation, A.T. Murray, PH.D.

[7] The City of God, Book VII, Chapter 35.

[8] As Religiões do Rio, João do Rio.

[9] Thesaurus Magicus II, Humberto Maggi.

[10] Thesaurus Magicus II, Humberto Maggi.

[11] Thesaurus Magicus II, Humberto Maggi.

[12] Julgamento de Madalena de la Cruz, professa freira do Mosteiro de Santa Isabel dos Anjos, pertencente à Ordem de Santa Clara. Traduzido para o inglês por Verónica Rivas para The Devils Abbess: The diabolical revelations of Sister Magdalena de la Cruz, de Madeleine LeDespencer, Hadean Press.

Créditos da imagem: serpentshod

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