Sempre tive curiosidade em relação às ordens mágicas tradicionais, mas sempre tomei as informações que rodavam por aí com alguma reserva. É um bocado raro a gente poder acessar as informações com alguém que realmente esteja dentro da ordem e praticando. O que mais vemos é gente teorizando em cima de algum sistema ou ordem baseando-se em alguma conversa ou informações picadas da web ou de livros. Nesta busca por boas fontes acabei topando com Sar Fabre d’Olivet, que é iniciador martinista e representante da Irmandade dos Filósofos Desconhecidos. Ele topou responder às nossas perguntas e se colocou a disposição para responder quaisquer outras que surgissem depois da publicação deste material.
EDC: O que é Martinismo? É uma seita? É uma ordem esotérica? É uma religião?
FDO: Essa é a pergunta mais fundamental e, ao mesmo tempo, a mais complexa de se responder. Adianto, porém, que, se definirmos o Martinismo apenas como uma seita, uma sociedade esotérica ou uma religião, teremos uma visão muito limitada e, por isso mesmo, bastante distorcida desse movimento tradicional. Obras de referência e sites definirão o Martinismo como uma filosofia mística derivada dos ensinamentos de Louis-Claude de Saint-Martin, um nobre francês do século XVIII, que construiu o seu pensamento com base nas ideias de dois outros místicos europeus: Martinez de Pasqually e Jacob Boehme.
EDC: E esta definição estaria errada?
FDO: Ela está correta, mas define palidamente o que seja o Martinismo moderno, que se originou no final do século XIX, uma época de efervescência de tudo que dissesse respeito ao “oculto” na Europa. Assim, a melhor maneira de descrever o Martinismo moderno é defini-lo como uma escola de iniciação que veicula todo o conjunto do esoterismo ocidental sob a ótica francesa. É por isso que dizemos que o Martinismo é a “escola francesa” da (reformulação moderna) da Tradição Esotérica Ocidental, assim como a “Ordem Hermética da Aurora Dourada” (Golden Dawn) é a “escola inglesa” dessa mesma Tradição Esotérica Ocidental.
EDC: Já que você mencionou a Golden Dawn, poderia nos dizer se estas ordens têm algo em comum?
FDO: Tanto a “Ordem Martinista” quanto a “Golden Dawn” foram criadas no mesmo ano (1888) e com a mesma “agenda”: impedir que o crescimento impressionante da Sociedade Teosófica de Helena Blavatsky, na Europa, difundisse o esoterismo oriental a tal ponto que o esoterismo ocidental fosse esquecido. Desse modo, embora os métodos de ensino dessas duas escolas não sejam idênticos, dadas as diferenças muito patentes entre as culturas francesa e inglesa, ambas se voltam ao estudo e à prática do mesmo corpo doutrinário: o trivium hermeticum, isto é, astrologia, alquimia e teurgia (magia cerimonial), acrescidos de cabala, tarô e angelologia, entre outros temas tradicionais.
EDC: Mas, se é assim, por que a ênfase na pessoa de Saint-Martin?
FDO: O fundador da “Ordem Martinista”, o médico Gerard Encausse, mais conhecido como Papus, tinha a firme convicção de que uma escola esotérica verdadeiramente tradicional deveria contar com o apadrinhamento de um Adepto, de um “Iluminado”, a fim de se inserir numa “cadeia astral” capaz de conferir efetividade aos seus ritos. Em outras palavras, sem essa vinculação a um “Mestre”, os rituais iniciáticos não seriam aptos a produzir profundas transformações na consciência dos homens e mulheres que os vivenciassem, pois não passariam de mero teatro profano. Uma vez que Gerard Encausse detinha um legado tradicional que remontava a Saint-Martin, ou seja, uma transmissão iniciática, Papus vinculou a “cadeia astral” da sua escola a esse filósofo e místico francês. Contudo, basta um rápido passar de olhos nas cerca de 200 obras escritas por Papus para se concluir que Saint-Martin e seus mestres, Pasqually e Boehme, estavam longe de ser o foco maior do seu interesse multifacetado nas ciências ocultas.
EDC: Onde, então, entra a filosofia de Saint-Martin no contexto da “Ordem Martinista”?
FDO: A assim chamada “doutrina da reintegração dos seres”, primeiramente exposta por Pasqually e posteriormente remodelada por Saint-Martin à luz dos escritos de Jacob Boehme permeia sutilmente os três graus iniciáticos que compõe o sistema martinista. Essa doutrina de sabor gnóstico e cabalístico busca explicar as origens da humanidade e a maneira pela qual ela teria “caído” de uma condição primitiva sublime e majestosa ao estado atual em que se encontra. Essa ideia encontra eco no mito praticamente universal de uma “idade de ouro” da humanidade, que teria degenerado enormemente ao longo de milênios, e, em linhas gerais, é a mesma doutrina ensinada na “escola inglesa” da Golden Dawn. Por tudo isso, a “Ordem Martinista”, cujo nome original foi “Ordem dos Filósofos Desconhecidos”, mas que muito mais apropriadamente poderia ser chamada de Ordem “Papusista”, é mais facilmente compreendida como a vertente francesa da Tradição de Mistérios do Ocidente.
EDC: Você poderia elaborar mais sobre este mito da “queda”?
A queda está inserida na “doutrina da reintegração dos seres” exposta por Pasqually no “Tratado da Reintegração dos Seres” e elaborada por Saint-Martin e por Willermoz de acordo com as suas óticas e com as doutrinas que cada qual estudava paralelamente aos ensinamentos da escola de Pasqually, a “Ordem dos Elus-Coën”. Num resumo muito grosseiro, essa doutrina, que se traduz num comentário ao Antigo Testamento, diz que Deus criou espíritos para lhe prestar um “culto” em conformidade com o grau hierárquico ocupado por cada qual no esquema da criação. Alguns desses espíritos quiseram criar para além do nível hierárquico no qual haviam sido alocados. Essa “revolta” contra as ordens do Criador, chamada, na denominação de Pasqually, de “prevaricação”, trouxe ao universo criado o problema do mal e gerou um desequilíbrio na ordem cósmica, o qual precisava ser reparado. Deus, então, criou o universo material como uma prisão para esses espíritos, a fim de, temporariamente, pôr esses seres à margem do restante da criação. Era preciso, de todo modo, que esses espíritos fossem reintegrados ao seio da divindade e, para tanto, Deus criou o homem, Adão Kadmon, um intermediário entre os espíritos caídos e o próprio Criador. O homem, assim, era o soberano absoluto da criação e o reparador que traria novamente o equilíbrio ao cosmos. Os espíritos prevaricadores, contudo, tentaram o homem, convencendo-o a também ele criar além do que lhe era permitido e, dessa maneira, o homem “caiu”, fragmentando-se em múltiplos aspectos, ou seja, a humanidade, e passou a habitar a prisão da matéria. Novamente, para reintegrar os espíritos prevaricadores e a humanidade à glória divina, Deus enviou um espírito de elevada hierarquia, o Cristo, que, através do seu sacrifício na cruz, seria o reconciliador, o reparador e o reintegrador dos espécimes caídos. Dizendo de outro modo, o Cristo seria a ponte entre o universo caído, seus habitantes e a divindade. Diante desse drama cósmico, Pasqually preconizava rituais teúrgicos, isto é, um sistema de magia cerimonial voltado a conduzir ao processo de reintegração de toda a humanidade por intermédio do Cristo, denominado, nos círculos Coën, como La Chose (A Coisa).
EDC: Essa doutrina não parece muito diferente daquela ensinada pela Igreja Católica Romana… Não é ela muito moralista? Não incorreria nos mesmos vícios históricos da doutrina cristã exotérica, marcando fortemente o sentimento de pecado, de culpa e de “castração” espiritual do ser humano?
A pergunta é muito pertinente e a resposta mais adequada talvez seja aquela que menos se espera ouvir: depende! Se o esoterismo envolver a mesma visão de mundo da tradição judaico-cristã, ele não passará de uma repetição desnecessária e requentada de tudo aquilo com que a humanidade vem lidando há séculos. O problema, portanto, está exatamente em os líderes martinistas serem capazes de interpretar o mito da queda sob a perspectiva esotérica, interior, sem descambar para o “igrejismo” e o moralismo que não deveriam encontrar lugar no seio de uma sociedade de livres pensadores.
Farei, aqui, uma breve pincelada sobre a minha compreensão desse mito sob a perspectiva interna. Os ensinamentos esotéricos de quase todas as tradições e épocas afirma que o ser humano é muito mais do que aquilo que manifesta no seu dia-a-dia, do que o ser pequeno, mesquinho e sem horizontes que tão bem conhecemos. Sem adentrar o porquê de o ser humano não expressar seu aspecto mais elevado e sublime, fato é que vivemos uma experiência fragmentada, multifacetada, onde vários “eus” dominam o nosso universo mental e emocional. Em nós, existem todos os fragmentos do Adão Kadmon, do homem primordial, assim como as vozes dos espíritos caídos, que somos nós mesmos, ou melhor, aspectos do nosso próprio ser que parecem dissonantes e que não queremos enxergar de forma alguma. Nesse nosso afã de voltar as costas para as nossas próprias trevas, para o nosso aspecto caído, criamos mil e um subterfúgios que nos levam a uma existência muito distante da plenitude que poderíamos vivenciar.
A obra da reintegração, desse modo, seria o caminho árduo que envolve o reconhecimento das nossas trevas interiores, dos espíritos caídos que são nossos tantos outros “eus”, passando pelo acolhimento fraterno dessas sombras poderosas, sem culpa, mas com a assunção da nossa responsabilidade por todos os nossos aspectos menos bonitos, até a consecução máxima da reintegração das trevas e da luz interiores.
O tema é complexo e demandaria muito mais para ser exposto minimamente bem. Deixo, assim, a dica de um livro que esmiúça esse mito da queda sob a perspectiva da psicologia analítica chamado “Teodiceia Psíquica”, de Ivan Corrêa.
EDC: Algumas ordens excluem ou limitam a participação de mulheres. Qual é a posição do Martinismo em relação à participação delas?
Desde a sua criação, no final do século XIX, a “Ordem Martinista” admite mulheres em absoluto pé de igualdade com os homens. É bem verdade que, após a morte de Papus, seu sucessor, Charles Detrè, reformulou a “Ordem Martinista” para que passasse a admitir apenas homens maçons. Essa alteração, contudo, descontentou vários membros do Supremo Conselho e, sobretudo, o cofundador da ordem, Augustin Chaboseau. A partir daí, surgiram as duas primeiras dissidências históricas da “Ordem Martinista”, a “Ordre Martinista e Sinárquica”, fundada por Victor Blanchard, e a “Ordem Martinista Tradicional”, fundada por Chaboseau. Atualmente, a “Ordem Martinista de Paris” permanece fiel ao espírito original papusiano, admitindo mulheres livremente. Já o grupo aderente às ideias de Detrè tornou-se uma pequena organização pouco expressiva denominada “Ordem Martinista de Lyon”.
EDC: Quais são as transformações positivas mais evidentes que este tipo de sabedoria pode trazer aos homens e mulheres em nossos dias?
A principal e mais relevante transformação que um estudante comprometido experienciará decorre do encontro consigo mesmo, isto é, do reconhecimento das suas trevas interiores, da descoberta de um aspecto luminoso do seu ser e da harmonização desses opostos em si, culminando no seu renascimento como um novo homem ou como uma nova mulher mais pleno e, portanto, mais feliz.
Isso é tudo, mas pouquíssimos realmente conseguem atingir esse grau de consciência, sobretudo porque a tendência predominante em praticamente todas as associações humanas voltadas à espiritualidade é uma ênfase excessiva na luz e uma fuga escapista dessas trevas interiores, ora ocultadas muito fragilmente num discurso moralista, ora projetadas no exterior, seja no outro, seja na sociedade.
Seja como for, a ferramenta colocada à disposição do estudante para empreender essa caminhada para o “grande além de dentro” é a Iniciação. A Iniciação, quando efetivamente vivenciada, conduz a uma nova existência, a um despertar para níveis mais altos de consciência. É, portanto, uma oportunidade valiosa de crescimento espiritual. Essa caminhada, porém, permita-me insistir, passa necessariamente pelo reconhecimento da nossa estrutura egóica e pela sua integração ao complexo conjunto de forças psíquicas que é o ser humano. Um chavão muito comum é a definição da Iniciação como a senda que conduz “das trevas à luz”, mas é ainda mais comum não se perceber que se essa jornada parte das trevas, elas são uma parte fundamental desse processo interior de amadurecimento integral do ser humano.
É justamente esse o objetivo da teurgia martinista, sobre a qual tanto se fala, mas tão pouco se compreende: a integração gradual da personalidade inferior do praticante e a expansão da sua consciência rumo a um estado mais amplo e elevado de consciência.
EDC: Você poderia nos contar um pouco sobre o sistema de graus no Martinismo?
A “Ordem Martinista” conta com três graus progressivos, cada qual voltado a um conjunto de temas tradicionais e práticas de cunho místico e mágico. Esses graus se denominam Associado, Iniciado e Superior Desconhecido, em francês Superieur Inconnu, o qual forma as iniciais S.I., fundamentais em todo o sistema místico e iniciático martinista.
Há, ainda, um quarto grau, conhecido como Iniciador Livre (Libre Initiateur, L.I.I) ou Superior Desconhecido Iniciador (S.I.I.), o qual autoriza o seu detentor a iniciar outras pessoas e a formar seu próprio grupo.
A criação de um 4º grau que outorga a prerrogativa ao seu detentor de dirigir o seu próprio grupo martinista foi fundamental para o crescimento e a disseminação rizomática dessa escola iniciática. Por outro lado, isso levou a que houvesse tantos “martinismos” quantos são os seus Iniciadores Livres, de forma que nenhum deles, tampouco nenhuma organização martinista pode reivindicar o status de “Voz do Martinismo”, mas, quando muito, limita-se a transmitir uma interpretação particular desse sistema de iniciação.
Um ponto muito importante a se considerar é que a Iniciação Martinista é sempre física, presencial, e aquele que a confere deve, necessariamente, deter o quarto grau.
EDC: Há quantos anos o Martinismo tem sido difundido no Brasil?
Muito resumidamente, o Martinismo chegou no Brasil em 1904, com Dario Vellozo, criador do “Instituto Neopitagórico”, ainda em funcionamento. Em 1907, Antonio Olívio Rodrigues é iniciado no Martinismo e cria o “Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento” como antecâmara externa para uma loja martinista cuja existência foi muito breve, assim como a “Editora Pensamento”, voltada a traduzir e disponibilizar para o público brasileiro as principais obras da Tradição Esotérica Ocidental e Oriental.
Na década de 20, a família Mascheville chega ao Brasil e dá novo impulso ao Martinismo com o trabalho de Albert Raymond Costet de Mascheville (Cedaior) e de seu filho Leo Costet de Mascheville (Sevananda). O trabalho de Cedaior e Sevananda foi difundido na Ordem Martinista da América do Sul.
Na década de 70, o Martinismo experimentou um novo ciclo no Rio Grande do Sul, a partir do trabalho de um grupo de iniciados liderado por Ary Ilha Xavier.
Pode-se dizer, de todo modo, que o Martinismo passou a ser conhecido mais largamente no Brasil no final da década de 80, quando a “Tradicional Ordem Martinista” passa a conferir iniciações na sede da Grande Loja de Língua Portuguesa da Ordem Rosacruz AMORC, em Curitiba.
EDC: Qual é a estrutura atual do Martinismo no Brasil?
O Martinismo encontra-se difundido em todos os Estados do Brasil. O maior agrupamento martinista no Brasil e no mundo é a “Ordem Martinista Tradicional”, aqui conhecida como “Tradicional Ordem Martinista”, vinculada à Ordem Rosacruz – AMORC e reservada apenas aos membros que tenham alcançado o Primeiro Grau no sistema iniciático da AMORC.
Outros grupos também bastante representativos no Brasil são a “Irmandade dos Filósofos Desconhecidos” e a “Ordem Martinista da Rosa+Cruz Dourada”, que contam com lojas, heptadas e grupos de estudo em vários Estados.
EDC: Qual é a idade média dos interessados no Martinismo aqui no Brasil?
Temos notado que a busca pela Iniciação Martinista tem sido buscada majoritariamente por pessoas jovens, com idade variando entre 18 a 35 anos, muito embora pessoas mais velhas também se sintam atraídas por essa escola.
EDC: Você poderia nos passar os contatos (e-mails) das lojas martinistas que estão aceitando novos estudantes?
Passarei os contatos das duas ordens cujo trabalho eu acompanho de perto e, portanto, posso recomendar sem receio. Além disso, ambas aceitam membros sem qualquer distinção de gênero (ou de identidade de gênero), orientação sexual, etnia e credo religioso. São elas a Irmandade dos Filósofos Desconhecidos e a Ordem Martinista da Rosa+Cruz Dourada
***Perguntas submetidas pelos leitores poderão gerar novas partes desta entrevista.***
Na imagem: Louis-Claude de Saint-Martin