Ele acorda, lava o rosto, prepara o café da manhã: ovos com bacon.
Há um tempo decidiu parar de comer certa carne, a carne desses animais mortos aos montes por uma indústria que não mata – ah, a Morte, fase essencial ao grande ciclo sagrado da Natureza -, mas assassina, para ter cada vez mais lucro e só. Sempre foi carnívoro do tipo bem sangrento, amante da carne crua: peixes, aves, bovinos, suínos… sim, eu sei, chega a ser perigoso isso.
Decidiu parar, não por negar a morte como parte do ciclo da Natureza, mas por não concordar com essa indústria alimentícia e seu formato, que explora a vida animal sem o mínimo respeito, e cada vez mais. Há que se respeitar o sacrifício feito por cada pequeno ser da Terra, que contribui para a manutenção da vida Nela, no Universo, na roda perene da Criação: vida, morte, renascimento. Há que se respeitar. Há que se agradecer àquela vida animal que é privada da experiência de Ser no mundo para que nos alimentemos, e de preferência que esse agradecimento venha com a certeza de que, quando chegar a nossa hora, também nós nos ofereceremos (ou seremos oferecidos) em sacrifício, porque a morte está aí pra todo mundo e por aí vai.
Contudo, entre acessar o problema com a Razão (ai, Hod) e de fato empenhar-se naquela Guerra Interior (ai, Geburah), que, esperamos, orientará a néscia personalidade em direção aos desígnios da essência, ele gasta um bom tempo se debatendo como um peixe na lagoa netuniana e sistemática da zona de conforto, onde nem vento bate, paradinha da silva. E para o almoço? Vai o que tem mesmo, bife acebolado.
Passivo na repetição diária dos afazeres mundanos, pesa no estômago a lenta digestão da angústia do animal abatido em condições atrozes, e na presença do peso se reforça o incômodo desse lugar de Pendurado:
“- Na próxima refeição eu faço diferente” – ele garante.
Na próxima ele muda, porque mudar agora seria esforço demais. Um corpo parado tende a continuar parado, se me permitem citar a Mecânica Clássica. Para sair da passividade, é preciso empreender o martírio de uma ação cheia de renovada energia, que envolve comprometer-se com um prazer menos imediato, mais sutil. Substituir o prazer da carne na boca por aquele outro, de gosto mais elevado: o prazer de corresponder, na barulhenta vida rotineira, ao que o espírito pede em silêncio. Mais ética, mais fluxo de vida, mais respeito. Começar no microcosmo da alimentação, e com sorte desaguar no macrocosmo de todas as relações que estabelecemos com a Criação: mais ética, mais fluxo de vida, mais respeito.
Para isso, parar tudo agora e pesquisar onde/como comprar carne de abatedouros e fazendas que levem em conta a sacralidade que há em abater um animal para comer. Parar tudo agora e fazer receitas veganas e sustentáveis na rotina que levamos. Parar tudo agora e priorizar a realização da Verdadeira Vontade da alma: tudo isso pediria a restrição do prazer imediato; a dispensação de energia em quantidade para mudar um hábito; a restrição do prazer aos domínios do que se quer realizar no mundo, da ética que se quer imprimir nele através de quem se é, das escolhas feitas. Isso dá trabalho, muito trabalho. Isso pede esforço, muito esforço. Isso pede autodomínio, muito autodomínio. Isso pede presença, muita presença. Isso deixa a gente sem tempo para criticar o coleguinha, e talvez nos torne até mais empáticos frente aos supostos “defeitos” alheios, mas… Criticar costuma dar menos trabalho, e ainda dá uma leve sensação, ao Pendurado em nós, de que ele está fazendo alguma coisa.
“- Melhor deixar pra amanhã e jantar logo a língua de boi que minha mãe fez; vou comer mesmo é por ela, afinal seria uma ofensa não aceitar ao menos um pouquinho” – ele garante pra nós, ali com a cabeça enterrada em Malkuth, o Pendurado. A julgar pelo dia que teve hoje, podemos presumir que amanhã o dia também terá início com ovos e bacon.
Neste ponto, a esperteza das leitoras e dos leitores já desvelou a metáfora, presumo: substitua a carne aqui por qualquer dos gritos de mudança que nossas almas têm berrado, mas que permanecem emudecidos de ação cotidiana esperando que nós realmente nos comprometamos com eles. Se o amanhã é o amontoado relativamente organizado dos resultados das ações de agora, protelar nada mais é que abandonar ao suspeito acaso decisões que só nós poderíamos tomar e sustentar diariamente, uma vez que são decisões que só interessam a nós, buscadores e buscadoras de uma relação cada vez mais estreita com as verdades que emanam do coração.
Quanto custa o salto de consciência que substituiria os ovos com bacon do Pendurado que nos habita por, sei lá, uma manga bem madura e colorida, colhida com amor e gratidão? Não é tanto o alimento sabe, mas a disposição com que se come, e o caminho percorrido por ele até nós. Me vem uma receitinha aqui: suor, paciência e a educação exigente daquela autoindulgência excessiva que alimenta a inércia. Vale também a consulta a profissionais sérios que possam nos ajudar a sondar o âmago das dores emocionais e padrões mentais que paralisam a ação, gerando cenotes de emoções reprimidas nas nossas profundezas.
Como podem ver, muito custa dar à alma o poder de imperar sobre o corpo, a mente e as emoções. Fica aqui meu desejo de que não tardemos muito em dar nossos primeiros passos… ouvi dizer que há um tipo de prazer único reservado a quem vence as batalhas interiores, bem distinto daqueles que nos oferecem todas as séries do Netflix que possamos assistir largados no sofá. Se há.
Parada breve, reflexão essencial.
Sem demora, herói em meia jornada!
De escolha e sacrifício se faz a encruzilhada,
e só quem ousa um caminho conhece a linha de chegada.
Créditos da imagem: “Calf’s Head and Ox Tongue” (1882) – Gustave Caillebotte,1848-1894.
Domínio público, disponível em: https://www.artic.edu/artworks/154121/calf-s-head-and-ox-tongue
Crédito a imagem do banner: Personare
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