Comparo a sabedoria a uma Águia que voa muito alto; ela consegue dessa forma elevar-se para além da pequenez da sua visão limitada do Mundo, para abarcar sob suas asas outros inúmeros pontos de vista através dos quais a Criação observa a si mesma, no ato contínuo de criar. Alguém poderá chamar a águia de insensível, uma vez que dessa forma ela consegue sobrevoar a chantagem emocional alheia, e se quiser pode até fazer vôos rasantes de bem calculada e ameaçadora indiferença sobre cancerianas como eu. Olha só esse dedinho do “alguém” apontando para mim.
Seguindo essa linha de pensamento, eu poderia concluir aqui, na companhia aconchegante da minha xícara de café numa tarde escura e chuvosa de BH (ah, essa zona confortável do teórico), que uma singela viagem de avião poderia ser suficiente para inspirar em nós a visita de Sofia. Mas não… para experimentar a sabedoria, apenas o sentido da visão, ainda que expandida, é muito pouco.
Estamos vivendo nossas vidas em um Mundo feito de milhões de estímulos, prontos para bombardear todos os nossos sentidos, dos quais apenas uns poucos de fato experimentamos com consciência. Pergunte a um Touro astrológico bem aspectado. Gostos, cheiros, sons, cores, prana… a fauna é vasta. Por algum motivo (cof cof), a humanidade tem estado muito envolvida com o sentido da visão, em detrimento desses tantos outros. Seguimos, via de regra, muito pouco investigativos em relação ao Mundo e suas linguagens desconhecidas, sistemas ocultos, programação secreta… ou, na minha honesta opinião, aterrorizados demais frente à ideia do desconhecido, do oculto, do secreto. Vejo isso cá com meus olhos como uma espécie de correria insana para simplificar conceitos e dogmatizar posturas, só para ver se fica mais quentinho morar nesse Universo tão cheio de quê mesmo? Desconhecido… oculto… secreto. Incognoscível. O Mundo comum segue carente de curiosidade a respeito do que raios a humanidade está fazendo por aqui, seguida de perto pelo mistério da Morte. Como crianças aterrorizadas, queremos respostas para aplacar o medo e a ansiedade, e não usufruir da busca e investigação como um gozo em si mesmo.
E o que o medo faz? Trata de encerrar-se em si. “Só existe o que posso aferir com meus instrumentos e métodos”, declara o Homo sapiens. Superinteressante, a princípio. Nós, seres de boa vontade, entendemos que tão logo progridam os desafios impostos pelo desconhecido / oculto / secreto, progredirão também os métodos e instrumentos utilizados para iluminá-los à consciência, certo? Sim, no mundo ideal lá do meu Templo Astral, onde decidi que quem tenta barrar o fluxo da iluminação da consciência não entra. Sem julgamentos, camarada democrático… apenas, e cada vez mais, considero contraproducente fazer concessões ao meu medo do desconhecido, que pode facilmente descambar para um vício de controle baseado em chantagens e sofismas e restrições que oh!, haja presença e disposição amorosa. E sim, o templo (ainda) passa longas temporadas esvaziado até de mim mesma… meu quinhão vem sendo pago aos pouquinhos.
Aqui no Mundo pretensamente objetivo, sinto que ainda estamos com muito medo da consciência desse fluxo que nos orienta a todos: o Todo sempre movente da Criação. Sendo assim, preferimos nos agarrar ao que os olhos podem ver; agarramo-nos a esse sentido com unhas e dentes, olhos fixos na visão para que ela não nos engane. Olhos fixos, e de preferência sem lágrimas, na visão alheia, para que não possa ferir as íris às quais tão desesperadamente confiamos o crivo de VERITAS. Olhos fixos no passado, para que alguma permanência seja represada enquanto o tempo escoa pelas mãos. Olhos vidrados, em pânico, olhando para o breu do caminho futuro, que aguarda com a respiração suspensa a nossa próxima escolha e suas consequências segundo as leis naturais. E dá-lhe espadadas no meio do caminho.
No presente mesmo, o aqui-agora das escolhas – que quando partem da essência fazem mover a grande obra no sentido dos nossos propósitos mais altruístas – acaba ficando em suspenso, aguardando a gente terminar de julgar o vizinho, de culpar a mãe, de xingar o governo, de postar o textão. Todos os olhos postos no Outro, espelho meu que tão pouco reconheço em meio a essa pantomima… e a danada da Sofia ficou lááá no segundo parágrafo.
Não comparo a sabedoria a uma águia apenas porque ela voa muito alto. Sabedoria não tem a ver apenas com saber, mas também com sabor, com sentir. Se for o seu tipo de estudo, vale a pena gastar um tempinho pesquisando o caminho etimológico da raiz dessa palavra mágica. O vôo da águia a impressiona (deixa-lhe uma impressão, uma marca, olha que bonito) não apenas pela visão expandida: ela também é marcada pela sensação do vento nas penas, pelo corpo feito mais leve pelas correntes de ar… tudo isso é tão real quanto a visão das montanhas e vales. O fato de que ela se permite tudo isso junto é o que nos indica que ela sabe (sapere, sabere) voar.
O caminho da sabedoria é permeado não só por conhecimento, mas pelas incontáveis marcas em nós das sensações vindas da experiência; pelo sabor das razões, causas e efeitos que fica na boca depois de um dia inteiro feito das nossas escolhas em diálogo com as escolhas alheias, com as escolhas de Deus. A sabedoria, assim como a magia, é dentre outras coisas cinestésica: melhor nos expressamos investidos delas se topamos a empreitada de expressar a alma através de todos os nossos sentidos, sem distorções ou tentativas viciadas de impedir seu fluxo, retê-lo ou manipulá-lo, em favor de uma egolatria que agora nos faz ver em parte, mas anseia, às vezes sem saber, pelo caminho da alma que nos levará a ver face a face. L’amour.
Acredito que é possível passar a viver em um Mundo muito mais amplo de possibilidades, a partir do momento em que desistimos de impedir ou manipular o fluxo da vida com base numa visão muito tacanha da realidade, onde quem dá a última palavra é aquela faceta do Eu que obedece apenas à expansão do prazer e à supressão da dor. Tá, a opinião dessa nossa faceta também conta, mas prefiro vivenciá-la como subordinada ao que entendo como ética e propósitos essenciais, alinhados à Lei Maior e à Justiça Divina – ao menos dentro dos limites impostos pela minha consciência… claramente estou no grupão que ainda vê em parte. Uma forma prática que encontrei de começar a vivenciar a sabedoria que existe em entregar o domínio do fluxo da vida ao velho sábio que me habita: exercitar a Presença.
Comparo a Sabedoria, na forma ainda embrionária de Presença, ao Leão. Porém, aqui preciso pedir aos leitores que me concedam a honra dessa licença poética, pois em lugar de só falar de Presença, prefiro a performance das próximas linhas. Caso eu não possa contar com a Vontade do leitor de imprimir sentido simbólico ao meu leão, de viajar guiado pela sua intuição ígnea nesse meu exercício literário, a metáfora que intencionei nem chegará a sê-la, e o leão vagará pelo texto, condenado à literalidade do Mundo comum, dessimbolizado. E então, leitor? Me dará o prazer da sua presença na construção dos significados da leitura? Pode pensar enquanto eu busco mais café… e deixo o futuro do texto também em suas mãos, como nas minhas. Como, afinal, sempre esteve.
A metáfora, vamos a ela. O leão impera no Reino de patas fincadas na sua presença, irradiando aquela juba solar e movendo-se de forma intuitiva pela Natureza, pela sua natureza. O próprio fogo feito rei. E ele nos leva a lugares, a pessoas, a situações que transformam dia após dia a nossa experiência da realidade. Não só de águia e touro vive a Sabedoria: a presença do leão em nós torna a vida mundana aquecida pelo fogo alquímico do espírito, inspirada, palco de grandes acontecimentos mesmo nas mais pequeninas e rotineiras cenas… performance do Criador. Dessa forma, não há então espaço para espectadores: somos todos protagonistas, co-criadores imbuídos da responsabilidade da escolha, ainda que o que vejamos na superfície sejam passivos e silenciosos leitores virtuais.
Recentemente, o fogo da inspiração me levou a investigar as origens sefarditas do sobrenome que carrego, Taborda. Cheguei ao idioma basco, de onde se origina o termo (Taborda significa “casa de campo”), e em seguida ao vilarejo de San Miguel de Taborda, na Galícia, Espanha. Foi curioso perceber que essas podem tanto ser simples informações genealógicas – como aquele leão condenado à literalidade – quanto raízes muito inspiradoras para fazer crescer aquela árvore (ou templo de Salomão?), nutrida pelo autoconhecimento e direcionada pelo auto-aprimoramento. Tudo dependerá de como eu escolherei interpretar tudo isso. Serei capaz de conceder a essas informações a licença poética e simbólica necessária, aquela que tira meus olhos do mundo ordinário e comum, ególatra e viciado, para elevá-los a oitavas mais altas de interpretação e visão de mundo, a sentidos mais despertos, a uma presença mais intuitiva, essencial? Talvez assim o tal vilarejo torne-se algo mais que só um vilarejo, San Miguel talvez não seja apenas um nome de arcanjo, nem os sefarditas apenas mais um grupo étnico-cultural. Talvez assim eu me sinta definitivamente como parte de algo muito maior e bem organizado, e cumpra-se uma etapa, vença-se um ciclo da minha consciência. Talvez assim a Sofia tope tomar um café comigo.
Para tanto, acredito que precisarei aprender a bater asas em direção a yesod, e buscar a companhia dos anjos para somarem-se à águia, ao touro e ao leão. Dos anjos provém a consciência do amor incondicional por toda a Criação, e sem eles o homem afasta-se da divindade que o habita. São essências divinas que colaboram para a manifestação e expansão luminosa do Todo, no sentido da integração e harmonia dos Mundos, ciclo após ciclo… ah, o gozo da Sabedoria suprema, virtude arcangelina. Quis ut Deus?
Créditos da imagem: Pixabay
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