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Foto do escritorElisa Taborda

Ao Louco

Agora há pouco eu tive um sonho muito Louco, que mais parecia uma epifania. Em lugar de encarcerar minha insanidade onírica, resolvi então dar-lhe asas e mostrar suas garras, com nada menos que palavras na tela em branco e uma xícara de café com leite. Tendo como companhia nessa madrugada apenas a ânsia de que um qualquer leitor partilhe comigo dessa insanidade, oferto agora minhas palavras ao Louco que me invade. Vou de rosa branca em punho, por via das dúvidas.


Sonhei que um gato preto passava correndo e eu o seguia. Ele chegava às raízes de uma árvore frondosa e lá brincava comigo. Um buraco entre as raízes, que mais parecia uma caverninha, engoliu o gato preto e eu mergulhei atrás. Até aí, tudo bem Alice. Cheguei a uma planície organizada em pequenas vilas, independentes entre si. Todas eram agrícolas em tempos de paz e bárbaras em tempos de guerra. Tempos de guerra e de paz se sucediam no fio espiralado do tempo.


Em tempos de paz, todos os habitantes da vila vestiam-se de preto, e voltavam-se para o plantio, a administração de recursos, o gerenciamento da distribuição justa entre eles. Em tempos de paz, a criatividade tornava todos prenhes de inovações tecnológicas, artísticas, filosóficas. Na praça central, discutiam-se os interesses comuns e buscava-se criar novos caminhos através da mistura de tantas opiniões, sem perder de vista a dignidade humana e a busca por um avanço equilibrado do coletivo. Somos Um. Valores como a empatia, o respeito, a polidez e o Amor, claro, permeando tudo isso, eram cultivados junto com o trigo e as uvas. O objetivo não era atender à maioria, mas a Todos, ainda que demorasse bastante para que chegassem a um denominador comum. Tempos de paciência, integração, gestação, parto, sangue… tempo de viver.


As vilas da planície encontravam-se periodicamente para um conselho geral das vilas, quando acordos referentes a territórios e trocas comerciais eram firmados. Nesse encontro, representantes das vilas vestiam branco e faziam propostas uns aos outros, que eram aceitas ou rejeitadas. As aceitas tornavam-se contratos feitos, as rejeitadas eram lançadas a novas rodadas de negociações, cada um cedendo um pouquinho por vez. Eles chamavam isso de CONVERSA, ora pois. Contudo, acontecia às vezes de os representantes de duas ou mais vilas não chegarem a um acordo. Nesse momento, ambas as partes sentiam que, se cedessem qualquer tantinho a mais, algo de muito ruim poderia acontecer… algo que eles não sabiam exatamente o que era, mas que deveria ser impedido frente à Síntese que nascia do coito linguístico chamado CONVERSA, esse coito entre a Tese e a Antítese. Síntese, essa filha um tanto inoportuna porque inovadora, inesperada, imprevisível. Afinal, ela é fruto da união da Tese com a Antítese, porém distinta de ambas em essência e caminhos. Que futuro poderia vir daí? Talvez fosse o futuro incerto que, por medo, precisasse ser impedido a todo custo. Tempos de guerra.


Em tempos de guerra, todos os habitantes da vila vestiam-se de vermelho, e voltavam-se para a fabricação de armas, o treinamento de combatentes e a distribuição fracionada de recursos. Em tempos de guerra, ninguém estava prenhe de nada além do ímpeto de sobrepor-se em força e vontade ao inimigo externo, à ameaça da sobrevivência, no caso a outra vila. Na praça central, discutiam-se os interesses da maioria em detrimento da minoria, pela necessidade bélica de respostas rápidas e precisas. Somos Dois, um de cada lado. Se as minorias se sentiam silenciadas, e o eram, justificava-se esse período de desigualdade pela necessidade de sobrevivência da vila; justificativa essa que só se sustentava pela existência da promessa dos vindouros tempos de paz, que reestabeleceriam o espaço coletivo de negociação das diferenças. Tempos de urgência, separação, combate, aniquilação, sangue… tempo de sobreviver.


Tudo isso, é claro, só se sustentava porque, fossem tempos de paz ou de guerra, prevalecia em cada indivíduo o desejo último do bem comum, fundamentado na certeza de que o ser não existia “sozinho”, não escolheria ser “sozinho”, enfiado numa bolha qualquer, entulhada de recursos só para si mesmo, a salvo dos conflitos. O bem comum era visto por todos como o tempo de paz entre todas as vilas, sendo os tempos de guerra períodos de exceção, e não modus operandi. Universal era a paz, entremeada por curtos períodos de guerra necessários às mudanças profundas dos paradigmas vigentes. A guerra como recurso de quem já não pode negociar, de discordâncias que atingiram o cerne, a essência, o eixo. Um recurso tristemente utilizado, pasmem: ninguém brandia uma espada sorrindo. Ninguém se orgulhava da arma na mão, apenas reconheciam sua necessidade enquanto ferramenta do medo humano frente aos ventos fortes da Mudança, dos Ciclos, da Roda. A guerra como recurso último, quando cortavam-se as cabeças de todas as possibilidades de CONVERSA.


Ah, o modo como conversavam… isso me impressionou muito. Conversavam frente a frente, olhos nos olhos, e as palavras eram tão poucas e breves que eu percebi que eles liam as mentes uns dos outros. Provavelmente aprenderam isso em razão do tamanho da Vontade que tinham de entender-se entre si, de chegar a acordos que talvez a língua falada limitasse, e não por desejos individuais de poder mental sobre quem quer que fosse, em benefício de um “sozinho”. Haviam aprendido a ler mentes por desejarem mais que qualquer coisa a co-criação pacífica daquele Universo-planície, pincelada por guerras que só poderiam marcar intensas dissonâncias medrosas… e se fosse assim, que assim fosse. Viam a guerra como um artifício da paz, e não como um fim em si mesmo, um meio para a vitória. De fato, o único meio para a vitória era a conciliação, a integração entre opostos que criava algo novo. Sustentar com coragem o medo humano daquilo que vem e que não se conhece, porque não se conhece a si. A guerra nascia quando falhava a flexibilidade, a dança com a Mudança… e tudo bem. Tempos de maior Amor e Liberdade viriam, em breve. Aquelas vilas estavam longe de sucumbir ao medo.


Uma loucura esse lugar, viu… me deu vontade de pegar minha trouxinha e saltar definitivamente o abismo que vi mais adiante. Daath que me aguarde:

– Conversa?

– Com Verso.

Chama esse teu Louco e diz: – “São!”

Faz da tua loucura o vão que te permite ver o Sol.



Créditos da imagem: Pôster “Sociedade Alternativa” encontrado via Pinterest, pertencente ao site www.chicorei.com

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