Um post no Facebook dizia assim:
“Alelo: rs237887GG
Gene: OXTRX
Pessoas com o seu genótipo tem menor chance de se envolver em um relacionamento romântico.”
Primeiro, ri bastante. Não sei de onde o autor tirou isso, mas achei extremamente curioso e assustadoramente revelador. Na mesma hora imaginei um documento deste jeito circulando pelos jornais e revistas:
“O Conselho Federal de Medicina informa que a leitura de genes visando à compreensão das potencialidades, dos possíveis obstáculos e dos campos com maiores probabilidades de sucesso de uma pessoa deve ser feita pelo profissional Médico. Procure o seu Médico caso queira se conhecer melhor e entender o que lhe aguarda em sua vida”.
Mude algumas palavras do texto acima e chegaremos ao anúncio de jornal da Cigana Vânia, cartomante, médium e sensitiva.
Eis o que acho: o método científico impôs uma maneira muito estranha de se viver. Primeiro, é preciso acreditar no método. Se você não acredita no método, melhor, se você acredita em algo que o método condena, prepare-se para ganhar de presente uma bela camisa de força.
Desta maneira, a ciência conseguiu criar uma aberração: nossa sociedade. Um amontoado de pessoas cuja bandeira principal é a da separação entre razão e fé, mas que vivem de fé na razão. Curioso. De toda a sorte, o post do anônimo me fez entrar numa reflexão que gostaria de dividir. Aqui não irei destilar verdades absolutas e certezas (ou tentarei não fazer isso). Apenas um pouquinho do meu pensamento que talvez não leve a lugar algum.
Para ganhar “legitimidade” tudo que não cabe no método científico (e sejamos honestos, se o mundo tá cheio de coisa que não cabe no método científico, é evidente que o método científico não dá conta de explicar e de sustentar o mundo) passou a fazer o impossível para colocar uma pitada de ciência no meio. Surgiram os “cristais quânticos”, a “Mudança de vida por reprogramação do DNA” e tantas outras coisas.
Uma leve digressão: não se engane, pois nas próprias áreas “científicas” isso acontece. Pare um dia para ver as coisas que os fabricantes de cosméticos colocam nas embalagens para chamar a atenção.
Atenção, galera dos “Cristais quânticos” e assemelhados: vocês não precisam se legitimar! Façam o seu e quem quiser que embarque! Parem de ficar metendo conceitos doidos que não fazem muito sentido apenas pra parecerem mais sérios.
Agora, assim como o que não é da “ciência” tenta se revestir dela, também a ciência saiu tomando tudo para si. E fez isso primeiro. Com isso, a astrologia tornou-se um besteirol sem tamanho e só passou valer a astronomia. Vamos a um exemplo mais perturbador: as “ciências humanas”? Sofrem até hoje com o conceito maluco de “ciência dura” contra “ciência mole”. O que a ciência não conseguiu tomar totalmente ou parcialmente, ela simplesmente descartou.
Entretanto, o ser humano está aí fazendo coisas parecidas com as quais fazias no tempo de Heródoto, pelo menos. Muito do que foi descartado pela ciência conseguiu persistir e agora é hora da ciência mudar a abordagem e dominar tudo de uma vez só.
“One ring to rule them all”.
Então, vamos pensar: e se a ciência for usada como mais um esquema? E se tudo que a ciência rejeita não for, afinal, um esquema? E se não der mais pra dizer o que é ciência ou não, pois nada disso faz sentido e ficar dividindo o mundo em A e B é chato e inútil?
Colesterol alto? Grande chance de morrer, hein. É, grande chance. Entretanto, não tá garantido, seu Doutor. Tá com dor de cabeça? Esse remédio resolve. Ou não. Vamos na tal “prova terapêutica”. Funcionou? Era esse o problema. Ok, vamos sair da medicina. Oswald de Souza (era isso né?) ficava calculando as chances do seu time ganhar no campeonato, mas certeza, ele não te dava. Não ousava.
O método em si não é o culpado pela imprevisibilidade das coisas. Afinal, são muitas variáveis e, com isso, não é possível determinar tudo com clareza. Então como é possível falar do “cientificamente comprovado” que inuda nossas vidas? Tudo parece estar comprovado pela ciência, ora. O que fica claro é que o método científico é utilizado de maneira ou conveniente ou abusiva ou ainda errada. Ou seja, pessoas partem de premissas furadas ou dão aquela torcida nas coisas para que, no fim, tudo seja comprovado da maneira que elas acham mais bacana.
Agora chegamos à era em que destrinchar os genes alheios tá moleza. Nas internets está cheio de kits para você ver, por exemplo, sua ancestralidade. Por apenas um pouco mais de 200 reais é possível descobrir de qual vilarejo no Baruquistão do Oeste saiu aquele seu tataravô que morreu de tanto tomar pinga.
Por um pouco mais caro, em breve, dará para olhar teus genes e dizer que tipo de pessoa você é e no que você é bom e no que você é ruim. Provavelmente. Sempre provavelmente. Pois assim, segredo, genética não é tudo. Existem fenômenos fora da ordem do genoma que influenciam o próprio genoma a agir de maneira diferente… Então, não dá para garantir nada.
Ah, mas aí tá comprovado pela observação e pela estatística que se você tem tal alelo (o variante de um gene, uma forma alternativa dele) de tal gene as chances de ter tal câncer são enormes. Corretíssimo! Não estou te dizendo para não acreditar nisso e não tomar as devidas providências dentro do razoável. Desde que, claro, você entenda minimamente de onde saíram esses dados e como eles foram gerados. Não importa a sua formação, você tem o direito de entender o que diz respeito à tua vida. Se o profissional não quiser lhe explicar e lhe apontar como compreender melhor, mande-o ir à merda e arranje outro.
Meu ponto agora é: quanto tempo demorará até que tudo isso se torne um mercado e comecem especulações sem fundamentos apenas para explorar o dinheirinho alheio?
Quanto tempo até virem os espertalhões protegidos pelo manto da ciência para te dizer que o alelo tal indica uma condição Y e te cobrar uma grana por um tratamento provavelmente ineficaz, já que as evidências para a correlação entre o alelo e a doença eram fracas e as de que o tratamento funciona eram menores ainda?
Explorar a fé alheia é negócio dos pastores e dos místicos, dirão os mais cínicos. Ora, se você acha que não exploram tua fé na ciência eu tenho uma definição pra você: inocente (pra ser educado).
A ciência não é muito diferente de tudo que ela rejeita. É apenas mais um modelo. Uma maneira de ver as coisas, limitadas como todas, pois tudo que nasce do humano é necessariamente limitado, ora.
Assim, como podemos rejeitar tudo que não é comprovado pela ciência como mera fantasia? O próprio método científico se corrige incansavelmente, é parte dele. Novos processos, novas ideias e novas abordagens levam a um alcance maior das perguntas e das respostas. Um exemplo simples: quantas vezes o ovo alternou entre vilão e herói da alimentação na última década?
O método científico pressupõe a limitação. Entretanto, a fé que a nossa sociedade deposita nele não aceita este “furo”. É de um mistura perigosa de ignorância e safadeza que nasce essa noção do infalível que o outro quer te fazer comprar goela a baixo.
No fim das contas, acho, escrevo também sobre o desrespeito enorme que as pessoas curtem dispensar sobre as outras. É muito fácil pegar sua “incrível mente científica” e usá-la para reforçar todos os seus preconceitos. Quer um bom exemplo? Vá estudar a antropologia evolucionista e horrorize-se.
A brincadeira do autor do post (muito boa, por sinal) foi o gancho que aproveitei para dizer o seguinte: não importa o método e não importa no que você acredita, se você parte de premissas desonestas ou escondidas e perverte a coisa para reforçar um ponto, não é legal. Deixando as cartas claras na mesa, tudo bem, cada um acredita no que quer e decide ou não se está a fim de criticar.
O mundo não é tão preto no branco quanto algumas pessoas gostariam de acreditar. O método científico é usado de maneira desonesta. O método científico é falível. Várias coisas que não passaram pelo crivo dele continuam firmes e fortes e nem por isso elas não funcionam ou não são válidas. Claro, existe sim charlatanismo em qualquer lugar. Existem aproveitadores. Isso não tem nada a ver com uma área ou com outra do conhecimento e do fazer, tem a ver com a natureza humana.
Resumindo: deixem os “cristais quânticos” em paz, mas pessoal dos cristais, esqueçam o quântico. Só cristais tá bom. No fim das contas, tá tudo bem se você não curte ou não acredita. Apenas deixe o teu semelhante curtir a onda dele em paz. Ninguém é dono da verdade de ninguém e muito menos da verdade do mundo. Lembrem-se, crianças: somos todos limitados.
Por isso, questione essa tua fé no que você dá como certo. Nem que seja para ter certeza de que tá tudo certo mesmo. Não dê a bobeira de seguir tudo cegamente e de condenar com os argumentos que te venderam.
Autor do post do Facebook, beijos e obrigado por me deixar citar teu post aqui. Continue postando coisas legais no Facebook.
Imagem: pixabay
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